À noite

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A passo de caminhada ocorre-me fazer o corta-mato que acabo sempre por evitar porque é íngreme e sou preguiçosa. Hoje não. Cruzo o xadrez inicial da baixa, subo as escadas do ascensor metálico com uma iluminação tão simples, perfeita. Subo o resto da rua harmoniosa, aqui as lojas não me chocam. Cumprimento o meu poeta preferido, presto vassalagem ao outro monstro da poesia, grandioso, ali de pé, maior do que a sua praça, tão pequena, tão charmosa. Avisto uma das várias ruas que desaguam na do elevador. Têm escadinhas, bancos para sentar, árvores  pequenas e, apesar da violação do Airbnb, ainda vejo tapetes às riscas e colchas antigas nas janelas. Olho para cima, o ascensor adormecido, abaixo a rua engole a sua casa de partida e espreita-se o largo do santinho. Está meio escondido, é uma delícia, a cereja em cima do bairro. Sempre quis viver aqui, terei sempre vontade de aqui viver.

O sítio do costume está tranquilo, como sempre cá fora, encontro o João. Simpático, sempre bem disposto. Com a confiança que ganhámos põe-se a pregar pequenas partidas, trocadilhos de linguagem e ri-se sozinho quando percebe que fui atrás. Quero ficar amuada mas rendo-me sempre às gargalhadas. Rir precisa-se mais do que nunca. 

Num ápice vou lá dentro, o Paulo, com um sorriso que ocupa a sala, faz questão que beba um shot com ele. Sinto-me em casa, agradeço o mimo, nunca me vou embora sem lhe mandar um beijo pelo ar.

Volto à rua, hoje não está um frio de rachar e gosto é de estar cá fora. O João está nos ‘lives’ e não liga nenhuma a ninguém mas lá o vou interrompendo. Ora bolas, estou ali para falar com ele, é favor dar-me conversa!  Mas eis que começa o filme de terror. Duas carrinhas despejam um sem número de turistas com o certificado de vacinação em riste. 

Salto logo dali para fora, ponho-me a caminho. Contorno as multidões de putos que à meia noite já estão completamente embriagados. Tenho a sensação que procuram, não tanto o divertimento, antes a alienação. Não sou defensora da atitude “no meu tempo é que era bom” mas na altura havia tertúlia na rua e só ficávamos um pouquinho embriagados por volta das quatro, quando os bares fechavam, e apanhávamos um táxi para o Lux ou outro clube de dança. Meia-noite? Pfff… a essa hora estava a chegar.

Continuo, não está ninguém na rua, aprecio a nobreza do silêncio. Assim que chego à calçada dos Paços do Concelho, com um com design que só encontro na Rua da Mouraria, paro, olho à volta. Parece um salão de dança. Imagino-me a dançar ali com um vestido da Ginger Roger, ele bem pode estar de ganga.

Tac, tac, tac, o som das botas ecoa pelo xadrez da baixa. Há muito que os néons clássicos desapareceram, aqueles que pareciam ter sido escritos com a mão direita e iluminados com a esquerda. Muitas das montras têm aquelas luzes eléctricas e compridas como as das cozinhas. Tenebrosas.

Não sigo sempre o mesmo caminho, vou enviesada a apreciar os candeeiros enfeitiçantes, o ferro forjado das janelas, a simetria dos edifícios, a calçada, sempre a calçada. De vez em quando lá passa um carro, de resto passo todos os vermelhos, sabe bem a transgressão.

A única companhia que por ali encontro são os valentes que lavam as ruas. A calçada fica molhada, a água que sai das mangueiras faz lembrar o som da chuva mas não chove.

Não costumo ir dar ao Rossio, mas despistei-me nas ruas interiores e sem querer cheguei à Betesga. Claro que a praça é bonita, o D. Maria ainda mais, as artérias que vão dar à praça também são interessantes mas, desde que a pastelaria Suíça desapareceu com o resto do quarteirão, nada me toca ali e a única coisa que me chama à atenção são os ciclistas da UberEats à porta do McDonald ‘s. Passo pelo Rossio sem que ele passe por mim.

Chego à realidade do Martim Moniz. É a única altura que gosto dele. Amplo, simétrico, pequenos holofotes amarelos, as laranjeiras bebés que alguém teve a ideia de colocar para tapar o sol. Hão-de tapar sim, quando for uma velhota a falar de doenças. Mas, à noite, quase que conseguem tapar o betão que estrangula a praça. Chego à tranquilidade da minha rua que vai dar à Lua.

Tenho orgulho, vaidade até, em partilhar a minha cidade, quer seja com portugueses, ou com turistas educados que sabem dizer bom dia, boa tarde, por favor indique-me o caminho… em português. Não é preciso mais. Às vezes faço com eles os caminhos por onde costumo andar, dou-lhes o meu olhar, chamo à atenção para o deslumbre que é caminhar numa rua e, de repente, aparecer uma perpendicular, a descer como se fosse uma ribeira que se junta ao Tejo, se funde com o céu, com o Sol quando o há. 

Tal como costumo fazer noutras cidades, sugiro que desliguem os GPS, fechem as apps turísticas e passem a flanar pela cidade. É provável que se percam mas é assim que se descobrem sítios. Flanando.

Sim, gosto muito de partilhar a minha cidade, a vida não faz sentido sem partilha. Mas, à noite, Lisboa é só minha e não a empresto a ninguém.

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