O assunto é discutido nas tertúlias, mas raramente chega às parangonas dos jornais. Na verdade, a gestão dos dinheiros da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) já foi, uma vez, motivo de investigação jornalística. Mas, no fim-de-semana de janeiro de 2003 em que a SIC trouxe o escândalo aos jornais televisivos, a detenção de Carlos Cruz por suspeitas de pedofilia abafou tudo e a notícia sobre a SPA morreu quase sem se dar por ela.
Resumidamente, a SIC anunciava ter documentos que indiciavam nepotismo, corrupção e gestão danosa na administração da SPA presidida, nessa época, por Luiz Francisco Rebello. Nas eleições seguintes, Rebello não foi reconduzido. Nada que tivesse impedido, anos mais tarde, que o seu nome tivesse sido dado a um largo na cidade de Lisboa.
Dezanove anos passados, duas administrações depois, nem Manuel Freire nem José Jorge Letria, o atual presidente da SPA, conseguiram por cobro às desconfianças e ao falatório. Nas redes sociais, quando se menciona a SPA, surgem frequentemente comentários deste género:
“Salários de 10 mil euros?” Indignou-se Francisco Moita Flores, antigo cooperador da SPA e que saiu da cooperativa em litígio com Luiz Francisco Rebello. Autor literário, de programas de televisão e cinema, Moita Flores explicou-nos que tinha descoberto, de modo fortuito, haver grupos privilegiados na repartição do imenso bolo de dinheiro que a SPA recebe via cobranças diretas ou via taxas fiscais, “que eram os amigos do presidente. Lembro-me que me saltou a tampa”, disse-nos. E saiu. Hoje, descobriu que as suspeições não acabaram.
E não acabaram porque as perguntas continuam sem resposta. Quanto ganha um administrador da SPA?
Resposta de Carlos Madureira, diretor do departamento jurídico da cooperativa: “Os membros do Conselho de Administração são remunerados nessa qualidade e não como membros do órgão electivo de Direcção, pelo que não poderemos, por diversos motivos, e tal como acontece em relação aos restantes trabalhadores, prestar informação sobre a respectiva remuneração”.
Acontece que, em princípio, ninguém quer saber quanto ganha um motorista ou um funcionário administrativo. Sabemos que os membros dos órgãos sociais não têm salários, são recompensados por senhas de presença nas reuniões em que participam. E sabemos que os administradores têm salários. Os cooperadores que falaram connosco dizem que esses salários serão exorbitantes.
Repetimos a pergunta mais do que uma vez, por email. Na última tentativa invocamos a Lei-quadro do Estatuto de Utilidade Pública, que, resumidamente, diz que as entidades com estatuto de utilidade pública devem “assegurar a transparência da gestão através da possibilidade de acesso aos documentos relativos à sua gestão financeira e patrimonial a quem demonstrar ser titular de um interesse direto, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido”, ou seja, no caso da cooperativa SPA, os cooperadores têm o direito a ter acesso às contas e no caso dos jornalistas é o tal “direito constitucionalmente protegido”. Isto é, a SPA deve responder às questões. Mas as respostas que obtivemos foram sempre negativas, como se um jornalista não tivesse direito a fazer perguntas.
Todas os textos legais que consultamos são claros quanto às obrigações de transparência e rigor. Por exemplo, a Lei que Regula as Entidades de Gestão Coletiva do Direito de Autor e Direitos Conexos (Lei 36/2001, 4ª versão) reza assim:
Artigo 10.º
Princípios
1 – A atividade das entidades de gestão coletiva respeita os seguintes princípios e critérios de gestão:
a) Transparência;
b) Organização e gestão democráticas;
c)
O mesmo texto legal (artigo 49º), atribui à IGAC (Inspeção Geral das Atividades Culturais) a fiscalização da lei, ou seja, o seu cumprimento. No ponto 3 do artigo 49º lemos que “a IGAC pode solicitar a intervenção da Inspeção-Geral de Finanças e da Autoridade Tributária e Aduaneira, sempre que exista necessidade de apuramento de matérias relacionadas com indícios de infrações de natureza financeira ou de matérias específicas cuja fiscalização e competência de intervenção incumba às referidas entidades” e que, ainda, “a IGAC” é a entidade competente para rececionar e avaliar as questões submetidas pelos membros, titulares de direitos, utilizadores, entidades de gestão coletiva e outras partes interessadas, sempre que considerem existir quaisquer atividades ou circunstâncias que violem alguma das disposições da presente lei.”
Enviamos o nosso email a este departamento governamental, solicitando resposta às seguintes questões:
1- O IGAC recebeu alguma vez denúncias ou indícios de eventual gestão danosa na SPA?
2- Se recebeu, que diligências foram feitas para esclarecer o assunto?
3- O IGAC sabe qual o montante dos salários dos membros do Conselho de Administração da SPA?
Sete dias depois, estamos a escrever e vamos publicar este artigo sem termos recebido resposta deste organismo.
E quando perguntamos aos cooperadores que estão contra o estado a que isto chegou, porque não “partem a loiça” nas assembleias gerais, respondem com o receio das represálias. Como se fosse possível a SPA deixar de pagar o que tem de pagar, como castigo por alguém se atrever a desafiar o poder instituído. E quando perguntamos porque não votam contra aquilo que não querem que seja aprovado, mostram-nos o boletim de voto…
Segundo nos contaram, o voto presencial é de braço no ar e o voto por correspondência identifica o votante. Ou seja, dizem os cooperadores, quem não quiser cair em desgraça vota a favor. Pouco democrático, o ambiente na SPA.
Reflexo disso, os cooperadores que falaram connosco pediram, sem exceção, para não serem identificados. Muitos nem responderam por escrito, preferiram conversas “ao vivo”. Alguns nem apareceram aos encontros marcados. Um filme negro.
Tudo isto, ao mesmo tempo que a SPA passa a mensagem de que moveu uma ação contra um dos cooperadores mais contestatários. Diz o diretor do departamento jurídico que “tendo em conta que o processo está ainda em fase de inquérito, a Direcção não poderá revelar o nome do Cooperador. Ainda assim, a SPA esclarece que a queixa não foi apresentada pelo teor das questões colocadas pelo Cooperador. A SPA recebe com regularidade questões apresentadas pelos diferentes autores que representa e não apresentou qualquer queixa crime contra qualquer deles pelas questões suscitadas. Por isso, o fundamento da queixa crime é outro, até porque a apresentação de questões não consubstancia a prática de qualquer crime.”
O tempo dirá se a queixa da SPA tem pernas para andar. Mas, se chegar a tribunal, até pode acontecer que ao fim do dia a SPA tenha de responder às questões que lhe são colocadas e a que não tem querido responder.