As misses e os escritores

Expressão corrente de fantasias e sonhos, a escrita constitui o espaço mais comum para libertar a imaginação e a criatividade humanas. Mas poderá considerar-se escritor todo aquele que escreve?...

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A questão colocou-se-me vários anos depois de ter entrado na via das literaturas, quando, na sequência da apresentação de um livro, alguém me atribuiu tal estatuto.

Fortes razões legitimavam essa reserva porque, ainda que licenciado em Medicina, só a vinculação ao Juramento de Hipócrates e inscrição na Ordem dos Médicos me garantiu o título de médico. Perante essa realidade, como não questionar a condição de escritor sem que, antes, tivesse obtido uma qualquer “creditação” por parte de entidade idónea?

Na América, usando o critério de diz-me quanto ganhas e dir-te-ei se és escritor, a destrinça talvez até fosse fácil. E, se aplicado tão elementar princípio à nossa “casa”, até poderíamos laborar sobre uma adaptação consentânea, do tipo diz-me quantos livros vendeste ou quantos prémios ganhaste. Mas essa seria sempre uma deriva sem nexo porque, a rezarmos nesse santuário, teríamos de exorcizar ilustres escritores, de Camões, Bocage a Pessoa.

O meu retraimento deverá ainda ser interpretado no contexto em que vivi, com a revolução dos cravos a inundar-nos de doutores e de engenheiros, sem a exigível formação académica. Uma “cheia” de diplomados que nunca cessou de crescer, perante a contínua chuvada de passagens administrativas e de falsas licenciaturas, esta uma “precipitação” em que a classe política se notabilizou, mas a que nem a reitoria duma prestigiada universidade pública ousou furtar-se. E foi assim, entranhadas estas e outras questões, e na ausência de escrutínio, que, durante anos, evitei usar o título de escritor. Até certo dia receber uma carta da APE …

O correio só me traz más notícias, razão óbvia para abrir o subscrito com apreensão. Ao tempo, integrado numa importante coleção de autores portugueses, acabara de “vender” milhares de livros e, para evitar confusões, até oferecera os direitos à causa de Timor. Porém, e ninguém sabe os segredos que um envelope timbrado encerra, logo imaginei grossa asneira… quiçá o incumprimento de deveres legais. Foi, pois, com agrado e surpresa que, lá dentro, deparei com uma inocente proposta para me tornar sócio da Associação.   

– Ora, toma! Por esta é que não esperavas…

No entanto, subscrito por um membro da Direção que de todo desconhecia, o meu apurado olfato depressa acusou uma intrigante fragrância: tratava-se de um convite avulso de algum “angariador de fundos” da APE, que tropeçara com o meu ignoto nome numa qualquer lista amarela, ou de uma iniciativa colegial, na sequência de uma apreciação técnica ainda que ligeira e abrangente?  

Visando obter resposta a tão pertinente dúvida, determinante na minha decisão, restava-me agradecer a iniciativa e solicitar tal “esclarecimento”. Poucos dias depois, mais uma agradável surpresa, o “colega” deu-me polida conta de que, tendo tido acesso a alguns dos meus textos, entendia cumpridos os requisitos para me propor como “par”.  

Tratava-se de uma opinião respeitável e que me sensibilizou, mas que, ainda assim, não me demoveu. Agradecendo a distinção, respondi que fazia depender a minha “inscrição” na APE de um convite coletivo, após análise, ainda que sumária, da minha obra. E porque nunca fui “cromo difícil”, juntamente com a cortês “exigência desse ritual”, até juntei vários livros para apreciação superior.

Adeus e até nunca mais ver, pensei, num cálculo que voltou a sair furado. Ao contrário do que supus, em breve recebia nova proposta, esta com a chancela da Direção. “Gente fina” que, tendo com diplomacia e elegância superado a fasquia que a mim impusera, prontamente me levou a preencher o documento que “legitimava” o meu novo título de escritor.

Honrosa inscrição na APE que nunca deixei de honrar, mas que em nada buliu com o percurso de um corredor solitário que evita equipamentos de marca, recusa aditivos e prefere trilhos silvestres sob meteorologias adversas. Até, recentemente, ter recebido uma “convocatória” irrecusável da Associação, para estar presente no “almoço de homenagem a quatro ilustres figuras da vida cultural portuguesa, com o título de Sócio Honorário, aprovado em Assembleia Geral”.

Ao contrário de outras artes e ofícios, raros escritores portugueses “ascendem ao estrelato” e, no meu canto, eu nem conseguiria identificar a maior parte desses mitos da literatura, que só conheço pela obra. No entanto, imperativo de solidariedade e gratidão, tal homenagem “obrigava-me” a quebrar uma regra que a mim mesmo fixara e pisar, pela primeira vez, os palcos da APE.

Entrado em ambiente desconhecido, deparei então com uma plateia diferenciada, mas algo retraída, como se ainda a despertar da longa hibernação provocada pela Covid-19. Perto de mim, e contra todas as evidências, uma veterana em contos infantis não se cansava de propalar a malignidade das atuais vacinas, firmada em “certezas” estatísticas e científicas, à altura da sua imaginação literária.

Do convívio, registei o notável “testamento” que Manuel Gusmão nos fez chegar, e que merece melhor divulgação, bem como o interlúdio musical proporcionado pelo acordeonista Paulo Jorge Ferreira. De resto, os discursos primaram pela informalidade. Tão informal que nenhum dos homenageados, ou os seus representantes, perderam sequer tempo a agradecer a deslocação dos presentes.

Nos últimos tempos, tenho integrado outro género de “convívios” com candidatas a “misses”, onde o bom gosto, a elegância, a simpatia e a comunicação, a par de uma beleza que já não se exibe em bikinis, constituem fatores determinantes e que, em certos casos, abrem lugar a carreiras profissionais profícuas.    

Tendo sido incumbido de convidar um dos homenageados da APE, a quem uma prestigiada associação queria atribuir um prestigiante prémio, deparei com um tipo que, de sobranceiro, nem um minuto do seu precioso tempo me concedeu. Reforçou assim uma máxima a que nunca mais fugirei: ao invés das “misses”, que são para conhecer e não para apreciar as obras, os escritores são para serem lidos e não para conhecer. 

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