Reza a História antiga e recente…
Durante muito tempo se falou, por exemplo, de «romanização», para explicar o facto de os indígenas peninsulares pouco a pouco se haverem deixado influenciar pelos novos hábitos trazidos pelos Romanos; e a ideia foi sempre, até não há muito, que desse contacto o Romano saíra vencedor. Até que se começou a ver que também os romanos veneravam as divindades indígenas e não se escusavam a dar aos filhos nomes de sabor local… Uma «coexistência pacífica», dir-se-ia, para usar duma expressão dos nossos tempos.
Contudo, foi bem outro o vocábulo ora escolhido para título desta crónica: contaminação! Não, não é por influência da situação pandémica que se vive! É porque esse relacionamento entre os poderes político e religioso assumiu, em todos os tempos, um carácter menos sadio, equilíbrio instável, manobras de bastidores…
Quando assumiu o poder, o imperador Augusto, esse não esteve com meias medidas e explicou tudo muito claro, ao adoptar como nome Imperador César Augusto: sou «imperador», porque o exército me escolheu; sou «César», porque legítimo herdeiro de meu pai; sou «Augusto», porque os deuses me abençoaram para aumentar o bem-estar do meu povo. Será também pontífice máximo, intermediário preferencial entre os deuses e os homens; e quando alguns se propuseram a criar mesmo um culto à sua pessoa, como se de uma divindade se tratasse, não se opôs – e lá estavam, nas províncias, nos municípios e nas colónias, os flâmines e as flamínias a organizarem esse culto e a manterem-no bem vivo em todas as instâncias. No século III, nas moedas o imperador surge de coroa radiada na cabeça, qual deus Sol, e, nas inscrições, amiúde é identificado deo et domino, ‘ao deus e ao senhor’. No célebre mosaico de Ravena, Teodósio está com uma auréola, como se fora um santo!…
Foi teocrático o regime político do Egipto Antigo, que o faraó como divindade se assumia de facto; teocráticos são, hoje, alguns regimes, ainda que não o ousem proclamar às claras; os nossos reis não hesitavam a escrever nos documentos oficiais «Dom F., pela graça de Deus, rei de Portugal e dos Algarves…»?
Tive ocasião de assistir no Brasil, em 1989, a uma das mais concorridas campanhas eleitorais para a Presidência da República. E não havia qualquer pejo por parte dos responsáveis máximos das seitas religiosas em virem à televisão manifestar o seu apoio a esta ou àquela candidatura, a mais adequada para levar o Povo ao verdadeiro reino de Deus!…
De contaminação se falou – para acentuar o lado negativo dessa… coexistência.
Um caso paradigmático em Cascais
Ocorreu em Cascais, no ano de 1970, um episódio que bem alvoroçou a serena pacatez da vila de nobres e pescadores…
Houve ocasião de dar uma ideia, a traços largos, do que foi essa questão («A discutida actividade religiosa») no suplemento ao livro Cascais Vila da Corte (páginas 113-116); mas como o assunto era tabu e ainda não acontecera Abril, o livro ficou na gaveta até Abril acontecer!…
Ao Pe. António Pereira de Almeida, prior durante 17 anos, sucedera, em 1969, o Pe. Dr. José Maria Henriques, que teve como coadjutor o Pe. Dr. António Henrique Tomás de Oliveira.
Não hesitaram ambos em pôr em prática uma série de inovações que de imediato soaram mal, no seio de uma comunidade conservadora. Acabar com a tradicional Procissão do Senhor dos Passos? Nem pensar – clamava o Povo! O objectivo é «a purificação duma comunidade em risco de se instalar em práticas de religiosidade convencional, em «gestos piedosos» vácuos e passíveis de distrair do essencial – retorquiria o prior – encetando «uma difícil pedagogia do encontro, do diálogo e da aceitação mútua de ideias e opções diferentes».

As reacções não se fizeram esperar. Assim, na quaresma de 1970, o panfleto «Um ‘melro’ de bico encarnado no poleiro de Cascais» foi depositado nas caixas do correio. Melro era o apelido de um dos intervenientes nas conferências a que o jornal «Novidades» se referirá, dizendo que haviam levantado «justo reparo e discussão».
Começa assim o panfleto, em jeito de quadra obrigada a mote (que o não é): «MELRO de bico encarnado / (Foi padre, de mais a mais…) / Tem o poleiro montado / Na PARÓQUIA DE CASCAIS». E prossegue:


Viu-se, pois, o Cardeal-patriarca obrigado a vir a Cascais, onde, a 25 de Março de 1970 (Quarta-feira Santa), proferiu longo discurso que o jornal «Novidades», de certo modo o órgão oficial da Igreja, transcreveria na íntegra (duas páginas inteirinhas), a 1 de Abril. A sua intenção: tentar reunir sob o manto maternal de Nossa Senhora «todos os paroquianos desta paróquia, e particularmente o pároco que vos enviei por muito o estimar (…), em paz, concórdia e alegria, na comunhão da fé, na comunhão dos sacramentos e em comunhão comigo, pastor e vigário de Cristo».

E logo na imprensa conservadora de Lisboa – designadamente o jornal «A Voz» – os ataques não tardaram. Proclamou Carlos Seabra, na edição de 28 de Março:
«Os padres lá colocados pertencem aos coveiros do Seminário dos Olivais, a maior esperança do Patriarcado e uma doas mais expressivas do catolicismo português das últimas décadas».
Em artigo do mesmo jornal, a 13 de Abril, o Dr. Francisco Veloso perguntava se tais sacerdotes não estariam «a soldo dos comandos da subversão». «Donde lhes vem o dinheiro que recebem?». E a terminar: «Não há possibilidades de contemporizar com personagens deste jaez; se não estão a gosto, mudem-se!».
E o prior mudou-se. Pediu a exoneração e despediu-se, a 25 de Abril (curiosa coincidência!…) de 1970, com uma carta assinada também pelos padres Tomás de Oliveira e Tavares Cardoso, não sem assinalar que, em sua opinião, tudo fora obra de «uma escassa minoria que, desenvolvendo as suas poderosas influências, conseguiu inculcar uma opinião e determinar o juízo da autoridade eclesiástica, ela própria prisioneira dum estado de coisas a reclamar uma corajosa reforma». Recusaram-se a pugnar por uma «Igreja-museu»; propuseram-se «inventar, na humildade e no risco, (…) um Cristianismo jovem, atraente e libertador».
Conclusão
O que temos aqui?
Uma ideologia política conservadora, profundamente enraizada na religião oficial, vê-se ameaçada, numa vila de grande relevo socioeconómico e cultural, por ideias potencialmente subversivas, veiculadas no ambiente religioso. Importava cortar o mal pela raiz com uma estratégia bem estruturada: o panfleto, por exemplo, revela a sub-reptícia disseminação ideológica em forma (os versos) e numa linguagem acessível e certeira (traidor, “complots” infernais, ateus, torpe progressismo…), de efeito seguro; depois, o recurso à hierarquia – e o Cardeal vem, apresenta-se «humildemente, numa visita pobrezinha, sem as manifestações festivas com que os filhos costumam receber o Pai».
Estamos longe dos tempos romanos ou da força política das seitas religiosas brasileiras? Quiçá não. A contaminação assumiu novos moldes, mas obedeceu, de parte a parte (assinale-se!), ao mesmo requintado esquema de actuação!
O que este soberbo texto de José d´Encarnação comprova, desde a exposição do que foi o contacto do Império Romano com as suas colónias, é que as convivências entre vencedores e vencidos, ou conquistados, nunca são pacíficas, sobretudo quando se exige ou é necessária a mudança. A dificuldade em modificar, reestruturar, ou reorganizar práticas, por muito benéficas que sejam, reside na ameaça que se coloca a um grupo, quase sempre instalado no poder, de perder privilégios.
As campanhas de ataque com desinformação bem orquestrada lembram as que se teceram à volta dos riscos da vacinação contra a Covid, com alguns desvios. É um fenómeno estudado em Comunicação sobre a construção do boato, na primeira metade dom século XX. A falta de conhecimento das populações, por um lado, e a consciente vontade dos detentores do poder, dotados de meios eficazes, de contrariarem as intenções dos reformadores, dão origem a campanhas de descrédito que acabam por arrastar a parte menos esclarecida dos primeiros.
Como diz José D´Encarnação no seu texto que muito agradeço ” Poder politico e poder religioso – a contaminação sedutora” o processo assume hoje contornos mais sofisticados e os antagonistas digladiam-se, com ruído ou num silêncio feroz, fazendo apelo aos meios persuasivos detidos pelos que estão próximos dos poderes político e religioso.