No concelho de Oeiras, Ana da Rocha Pinto, desenhadora de joias que cresceu numa família ligada às artes, recorda como começou: “Eu lembro-me desde sempre ter uma paixão enorme pelos materiais orgânicos”, declara enquanto nos recebe no seu atelier. “E quando ia para o Norte, para casa de família, adorava apanhar qualquer pontinha de arame das vinhas do meu avô, havia muitas pedras de quartzo, e desde que me lembro de ser gente que me recordo de manusear qualquer cabo de cobre que sobrasse de uma instalação eléctrica… tudo o que encontrava já transformava numa peça de joalharia”.
Para esta artesã, a paixão por essa profissão/vocação deve-se à influência de uma avó que residia no Restelo (bairro nobre de Lisboa) que gostava muito de joias. Mas que tipo de materiais orgânicos a atraem? “Essencialmente as pedras, e às vezes há pedaços de madeira que têm uma forma especial, algumas sementes que antigamente não se usavam”.
Ana foi sempre fazendo experiências como autodidata, comprando ferramentas e metais, inscreveu-se no primeiro workshop de joalharia com 15 ou 16 anos. Quis ir para a Escola António Arroio nos anos 1990, mas era uma época diferente e a conotação da escola era “menos positiva”, pelo que estudou Artes no ensino secundário enquanto mantinha experiências com joalharia; mais tarde tentou ir estudar para Londres, porém, “já tínhamos muitos artistas na família e mais uma artista, ainda por cima ir para tão longe, tão miúda”, levou a que a família se opusesse. Optou por fazer a licenciatura em Conservação e Restauro, “mas sempre com vontade de fazer joalharia”, pelo que fazia cursos para além das próprias experiências, uma vez que não havia muita formação na área. Uma das formas de prosseguir o seu caminho como joalheira era criar para os colegas: “Todos os anos há um baile de gala na Faculdade, e era muito giro até porque toda a gente já sabia que eu fazia joias, uma vez que eu andava sempre bem arranjada e com as minhas peças postas, eu fazia as joias para muitas das raparigas”.
A peça mais vanguardista que lhe pediram nessa altura foi “com uma espécie de sementes. Fiz um colar todo em cobre, uma gargantilha. Ficava uma peça orgânica mas também com um ar de realeza, e essa peça foi espectacular, foi brilhante, tão brilhante que acabei por ser convidada para um concurso aqui no Palácio do Marquês de Pombal em Linda-a-Velha”. Na altura, ganhou uma menção honrosa graças a essa peça.
Após concluir a licenciatura esteve sempre ligada às artes e antiguidades. Entretanto foi fazer um curso de joalharia durante cinco anos para Almada, para aprender as regras da alta joalharia, sob as ordens do mestre joalheiro Alexandre Ventura. “À antiga, mesmo à séria, fantástico”, recorda, e mais tarde fez outro curso em Santar. “Sempre me foi permitido fazer aquilo que eu gostava. Há regras, mas podemos seguir a nossa espontaneidade, sempre tive essa liberdade de fazer o que gostava”.
“A partir do momento em que eu soube fazer uma joia à séria, em grande, eu comecei a desconstruir, foi aí que eu fui deixando a arte nova para passar para uma linha mais depurada, geométrica e minimalista que me foi sugerida quando eu era mais miúda mas na altura não me fez sentido”. As inspirações da joalheira são a arte déco e a escola de arquitectura Bauhaus, mas “continuo com uma base muito orgânica”.
Aprecia a versatilidade e o movimento nas peças, “gosto que as peças se transformem em mais do que uma coisa e gosto que as coisas tenham algum movimento, porque dá-lhe um brilho diferente, um élan”. O toque lusitano nas suas criações vem das obras de Amadeo de Souza Cardoso, Almada Negreiros e o pintor futurista Santa Rita, mas em termos de influências, a mais decisiva é a obra de seu pai, o pintor abstracto Rocha Pinto.
Afirma que o seu trabalho é abrangente não só em termos de estética mas de valor comercial, porque deseja chegar a todos: “que toda a gente possa usar e ter acesso”. Porém, não lhe é alheio o facto de que “as pessoas que compram estas peças têm uma maneira de estar um pouco diferente, uma visão um pouco diferente, uma mentalidade e um nível cultural um pouco diferente… não falo de dinheiro mas de maneira de estar na vida. Se formos a ver, a grande parte das pessoas rendeu-se às medalhinhas, aos aços, a todas essas coisas que são algo industrial”. Não consegue fazer nada massificado “porque sou uma criativa de base, não sou mulher de negócios”.
“Como o meu cérebro está sempre a criar, gosto de fazer peças únicas, tenho um cunho realmente pessoal e dá-me um gozo imenso quando me cruzo com alguém com uma peça minha”, ainda para mais uma peça que não se pode repetir. Garante que jamais se podem repetir peças, porque o processo de construção “nunca é igual” e dá o exemplo de um anel: “o corte nunca é o mesmo porque é a mão humana que está a cortar, não é uma máquina que corta trinta iguais. É uma mão que corta! E sai mais torto, e a serra parte-se porque é muito fininha (as nossas serras têm um milímetro), há sempre alguma coisa que dá um cunho muito pessoal e muito único a cada peça, mesmo que seja uma série de dez que sejam supostamente iguais”.
Quando abriu o seu atelier no concelho de Oeiras, há oito anos, assumiu que não era fácil, “não há em Portugal grandes apoios a quem quer ser trabalhador independente” sem um capital financeiro à partida. Chega a falar de “teimosia” em continuar a fazer aquilo que gosta. Revela que mesmo quem se associou à AORP [Associação de Ourivesaria e Relojoaria de Portugal], colectivo que procura alterar a legislação a favor dos profissionais e da actividade empresarial, ainda tem bastantes despesas e dá o exemplo das licenças para poder vender online: 250 euros por ano para cada rede social, fora o site e uma outra licença que pode ascender aos mil euros.
Os artesãos não foram isentados de taxas de qualquer espécie mesmo em contexto de pandemia e a joalheira revela que não existem apoios para rendas ou de outra espécie. “O meu negócio mantém-se por paixão, por teimosia e resiliência”.
Sobre eventos públicos (como mercados e feiras) onde por norma os artesãos têm mais hipóteses de mostrarem o seu trabalho ao grande público, graças ao desenvolvimento do turismo, as feiras eram numerosas e muito frequentadas e assim mostrava os seus trabalhos. “Tenho peças no Japão, no Hawai e nos EUA. A marca ARP existe desde há muitos anos, mais à séria desde 2001 ou 2002, e a verdade é que antes trabalhava muito mais com metais nobres, quando entrámos na crise tive de alterar também as minhas bases, a minha matéria-prima”. Dá o exemplo de recorrer ao latão, cobre e alumínio, bem como pedras naturais.
Em época de pandemia, a joalheira admite que está “a ser bastante difícil” enquanto termina uma peça pequena a partir de um fio de cobre e uma semente com as mãos enquanto conversa. “De repente, uma pessoa tem um investimento enorme que está parado, tenho montes de peças em construção”, e o facto de terem sido canceladas exposições nas quais estava a preparar-se para participar não ajudou.
A artista assume dar preferência ao contacto com o público porque quer que cada peça seja usada, e afirma ser demasiado tímida para fazer uma transmissão ao vivo através da internet, mostrando a sua arte. “É uma relação que se cria [o contacto pessoal com o público]. “Quando as pessoas chegam ao atelier, e quando vêem fisicamente e presencialmente as coisas, percebem o trabalho que eu tenho, o gosto e a paixão”. Em Dezembro de 2020, chegou a fazer alguns open days para o público conhecer o seu atelier e gostou da reacção das pessoas, com a vantagem de haver um terraço.
Um grupo de artesãos, onde ARP se inclui, mobilizou-se para fazer uma feira de artesanato também nesse mês no Jardim de Paço de Arcos, mas ela acabou por não ir por se ter comprometido a abrir o atelier. Não se sentia confortável quando ainda se estava no pico da pandemia, ao passo que dentro do atelier – com as entradas de pessoas controladas – a situação era a inversa. Porém, não exclui o regresso ainda que faseado aos mercados e feiras. “Era bom que houvesse mais apoios aos artesãos, e noto que na Câmara de Lisboa há muitos mais apoios, mesmo em termos de formação, de open spaces…”, ficando de fora porque residia em Oeiras.
A autarquia liderada por Isaltino de Morais tem a ambição de ser Capital da Cultura em 2027 e isso poderia ser uma oportunidade para trabalhar com artesãos. E até 2027, será que alguns negócios de alguns artesãos poderão aguentar de forma a participarem, se para isso forem chamados? “A verdade é que a crise ainda não nos caiu em cima, e vai cair. A verdade é que, mesmo numa perspectiva muito positiva, se as coisas começarem a abrir, isto vai ser muito lento, porque vêm aí muitos apoios da União Europeia mas não sei para onde vão… eu espero que sim, numa perspectiva positiva, mas tenho alguma dificuldade em acreditar que as pessoas se vão aguentar. É muito difícil”.
Ainda a propósito da candidatura de Oeiras a Capital da Cultura, sugere que a autarquia faça um levantamento ” de quem existe, de quem são os artistas”. A artista defende a necessidade de “haver uma espécie de espaço comunitário de artistas em que nós também pudéssemos fazer o nosso trabalho e dar à comunidade”.