As mentiras do jornalismo

Quando se diz que os jornais (e os jornalistas) fazem tudo para conseguirem vender papel, é verdade. Só que uns tentam fazer bom jornalismo e outros nem por isso. Não se julgue que é modernismo dos tempos que correm, porque não é.

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A história dos folhetins escritos por Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão no Diário de Notícias, em 1870, é prova disso. Os ditos folhetins eram pura ficção, mas foram apresentados ao leitor do jornal como sendo notícia. Foi um alvoroço, tratava-se de uma história de um assassino em série que atuava na estrada que nessa época ligava Lisboa a Sintra. A polícia investigou, as investigações foram noticiadas, toda a gente engoliu a história como verdadeira. Foi uma comoção geral, as pessoas andavam assustadas e rezavam nas igrejas para que o assassino fosse encontrado, morto de preferência. Eram textos não assinados, apresentados como cartas ao diretor do Diário de Notícias. Mas tanto Eça de Queiroz como Ramalho Ortigão eram jornalistas. Isto é, pelos vistos nem sempre. Umas vezes sim, outras ficcionistas.

Este talvez tenha sido o caso de maior mistificação do jornalismo português. Mas foi na época em que os jornais viviam do que vendiam, mais até do que da publicidade ou de favores do Governo.

Lá fora houve o famoso caso da “guerra dos mundos”. Foi em 1938 quando uma rádio americana, a CBS, interrompeu a programação para noticiar uma suposta invasão de marcianos. Mais uma vez, o “teatro” foi apresentado como notícia, simulou-se uma “emissão especial” com repórteres na rua, depoimentos de gente que na verdade já jurava ter visto os extraterrestres na rua das cidades, foi o pânico. A mentira durou apenas uma hora, mas as consequências foram verdadeiras em termos do pânico social que provocou. E não era carnaval.

estúdio de rádio da CBS onde foi feito o programa “A Guerra dos Mundos”, fotografia partilhada de www.dw.com

Sequelas deste programa têm-se repetido ao longo dos anos, quer na Literatura ou no cinema produzido em Hollywood, os extraterrestres já nos invadiram uma centena de vezes e, quando for verdade, já ninguém vai acreditar.

Uma experiência pessoal

Pessoalmente, já assisti a várias encenações, embora em menor escala. Uma das mais interessantes foi em Mogadíscio, na Somália, ano 1992. Naquele tempo, a Somália devia ser o sítio mais perigoso do Mundo. Sem governo, a população combatia na mais estranha guerra civil que já vi. Vários clãs matavam-se entre si, numa demência de todos contra todos. A história é um pouco longa, mas acho que vale a pena.

A avioneta alugada em Nairobi aterrou no aeródromo central de Mogadíscio, precisamente no momento em que aquela parcela de chão estava a ser disputada entre duas das facções em conflito. Como não havia comunicação via rádio com alguém em terra, o piloto (e nós) só se apercebeu que havia balas a voar, além do avião, quando já não conseguiu abortar a aterragem. O avião bateu no chão e foi rapidamente conduzido para trás de uma parede, onde sempre havia alguma protecção. Assim que o tiroteio teve uma pausa, o piloto levantou voo e nós ficamos. Eu, um fotógrafo americano e dois tipos alemães da televisão ZDF. A SIC tinha-me enviado sozinho para ali. Eu deveria procurar a equipa da Reuters e trabalhar com eles. Não há nada pior que ir para um sítio destes sem um companheiro.

Arranjar alojamento foi o primeiro tormento. Os tipos da ZDF tinham um contrato com a CNN e iam ficar na casa que a televisão americana tinha comprado. Eles são assim, chegam e compram! Decidi ir com eles, quem sabia se não poderia lá ficar também… Chegamos ao compound da CNN já de noite. O anchor preparava um directo, com cenário montado. Quando digo cenário, não estou a brincar com as palavras. Era mesmo um cenário, onde figuravam duas pick-up Toyota de caixa aberta, equipadas com metralhadoras pesadas, e vários somalis em pose de rambo… e o anchor americano dizia, no seu directo, “estamos na frente de batalha, atrás de mim os guerrilheiros de Aidid…”, blá blá blá blá… bullshit como se diz na China. Armar aos heróis, a grandes repórteres, dentro dos muros protegidos por guardas privados e com figurantes pagos… e eram aqueles tipos a referência mundial do jornalismo televisivo.

Podia ficar aqui a escrever livros sobre os mentirosos que fizeram e fazem “jornalismo”. Pode ser que este tenha sido o primeiro e uma série de artigos dedicados ao tema.

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