Passado 2020, dei comigo a pensar que também ele, como o 2019, fora filho de uma magana. O 19 por nos ter brindado com o vírus; o 20 por o não ter conseguido extirpar.
E a expressão, que me saltou assim de repente, sem eu a esperar nem pedir, fez-me regressar à infância, quando ouvia meu pai ou minha mãe, na brincadeira ou não, chamarem alguém de «filho duma magana». Nunca percebera exactamente o que isso poderia significar; mas, pelo jeito da expressão facial de um ou de outra, eu compreendia que, umas vezes, era brincadeira inofensiva, dirigida a alguém que tinha pregado alguma ‘peça’ e o pessoal ria de bom grado, que o fulanito a pregara a preceito; doutras, minha mãe assumia um ar grave, de coisa séria, e eu deduzia daí que a ‘peça’ fora grave, maldade a merecer castigo e a atribuição do epíteto carregado do seu forte sentido depreciativo.
Corri, pois, agora, ao dicionário, a descobrir o que era isso de magana. Como substantivo e como adjectivo. Como adjectivo – olá!… – tem logo que se lhe diga: «jovial», «namoradeira», «concupiscente». Portanto, assim a modos de atiradiça, é preciso cuidado com ela, que gosta de brincar, mas… Como substantivo, fia mais fino. Surge-me, em primeiro lugar, a informação de que é uma música antiga. E lá vou eu ao google a ver que tipo de dança ela é; nada mais consigo saber além de que se trata de uma antiga tocata; quiçá os melómanos saibam dizer-me. Depois, «mulher desenvolta e lasciva». Vi também o masculino – magano – e saiu-me esta: «Mercador de escravos que enfeitava os negros para agradar os compradores»! Ora toma!
A origem etimológica não oferece dúvida: deriva da palavra castelhana «magaña» (leia-se ‘maganha’), com o significado de «ardil, astúcia, engano».
Vai mais além o Dicionário do Falar Algarvio, de Eduardo Brazão Gonçalves, quando comenta: «Para evitar expressão menos polida, é muito frequente chamar-se ‘filho duma magana’ a quase tudo que nos desagrade e também a quase todos». Acho que, neste caso, também o Eduardo me saiu cá um filho duma magana!… Tão polido, tão polido, que misturou aí um ‘desagrade’ que pouco terá a ver com isso!…
Seja como for, fico na minha: o 2019 foi, de pleno direito, o filho duma magana; e o 2020 também! E alimentamos a esperança de que este ora começado não vá pelo mesmo caminho. Para já, brincando, brincando, está-nos a fazer a vida negra, o filho duma magana!
(o autor também publicou esta crónica em Notícias de S. Braz)