Pão por Deus e outras coisas

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À hora a que escrevo está a terminar uma fase do ano que eu classificaria de especial pelo simbolismo de está carregada onde se congregam bruxas, e mortos, numa amálgama de tradições que remontam aos tempos dos bravos celtas, já lá vão uns 3.000 anos.

Pessoalmente não me lembro de ter alguma vez participado no Pão por Deus, acho mesmo que nunca me preocupei em dar alimento às almas perdidas. Mas há quem o faça na melhor das intenções dando seguimento aos que, em Lisboa, depois do terramoto de 1755, tomaram a iniciativa de ajudar os desalojados indo pedir aos que tinham escapado à catástrofe. Assim nascia o Pão por Deus que chegou até aos nossos dias vestido de outras vestes e em risco de se diluir perante o avassalador avanço do Halloween, essa outra tradição de origem pagã.

Pessoalmente acho pouca ou nenhuma graça àquela cena do Halloween importada dos Estados Unidos em grossos envelopes de agressivo marketing. Mas não tenho outro remédio senão aceitá-la. Tenho netos. Quem os tem percebe do que estou a falar.

Na minha condescendência até já recortei abóboras em caretas horríveis com uma vela acesa lá dentro que rapidamente teve de ser substituída por uma lâmpada eléctrica … de pilha. Aquilo lá ficou no seu sítio, a fazer de farol para melgas e outros viajantes noturnos.

Confesso que esta fase entre o 30 de Outubro e o 2 de Novembro me perturba um pouco apesar de, como já deixei claro, não ser um grande seguidor de tradições. A única que realmente ainda me incita o espírito e a memória é a do Natal que os meus pais teimosamente assinalaram todos os anos com a história que eu bebia com algum interesse sobre o Pai Natal que descia pela chaminé e depositava as prendas no sapatinho cuidadosamente depositado para o efeito.

O alvoroço era mais que furacão interior na minha alegre e despreocupada infância na terra onde o Natal é festejado em mangas de camisa, por muito que o competente presépio incluísse pedaços de algodão a fazer de neve.

Com a idade a atingir avançados números no calendário, sentado no banco da uma vida feita, municiado da respectiva tolerância e paciência, dou-me conta de que, afinal, ainda me emociono com a tradição quando recordo aqueles que deixei de ter ao meu lado, mesmo quando viviam noutros meridianos.

Os meus pais, avós, tios, primos e primas, familiares próximos, amigos, colegas de trabalho ou de profissão enchem-me a memória mais neste dia do que em todos os outros do ano, num desfile preocupante em que me sinto a progredir em direcção ao topo da fila. Não preciso de vestir de luto para sentir a dor da perda, o silêncio da ausência. Não preciso, no mais fundo de mim, de fazer uma saudosa – quiçá dolorosa -, romagem ao cemitério. Carrego na memória todos aqueles que se projectaram em mim, me preencheram pedaços da vida e seguiram para outros orientes, etéreos, extraterrenos, sublimes na minha grata memória.

Feitas as contas, ao herdarmos dos celtas os cerimoniais que enchem hoje o imaginário dos meus netos mais pequenos e ocupam o tempo e as finanças dos pais, porque o tal de progresso a isso leva, vamos assumindo o ritual transmitido pelos nossos ancestrais, com mais ou menos convicção.

Numa fase em que as nossas vidas deixaram de ser o que eram, se calhar não faz mal em aceitar novos pilares onde assentar crenças capazes de ocuparem o lugar de descrenças antigas e ir vivendo em estado de felicidade subjectiva. E voltamos ao básico.

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