FOI ALTAR, PIA, TANQUE DE LAVAR, VASO

Não é caso único! Metidos em muralhas e em paredes, transformados em salgadeiras ou em floreiras – monumentos romanos, mormente os que têm letras, são, a cada passo, trazidos à ribalta por investigadores diligentes e argutos!

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Em Novembro de 2024, Carlos Maneira e Costa, arqueólogo da Câmara Municipal de Mafra, numa das suas deambulações, atento a tudo quanto era estranho, identificou uma pedra, de lioz, com aspecto muito antigo, no pátio de uma vivenda na Arrifana, freguesia de Igreja Nova (Mafra). Foi esse aspecto que lhe despertou a atenção, mas também a decoração fora do comum.

Contactou, por isso – noblesse oblige! –, os proprietários da moradia, Manuel Luís Agostinho de Araújo e Isabel Araújo, que prontamente acederam a permitir-lhe o estudo desse seu (agora) vaso de plantas, não sem terem manifestado admiração pelo estranho interesse do arqueólogo: era um simples vaso! Antigo, muito desgastado pelo uso, é certo, mas já por ali andava há muito.

O “vaso” tal qual é hoje

Parte já fora, em tempos, cortada e, na sua face inferior, originalmente lisa, escavara-se uma cavidade, para a transformar em pia. E, mais tarde, a pia virou tanque de lavar roupa (era preciso e estava mesmo a calhar!…), não se esquecendo o acrescento, no interior, de uma rampa de cimento com ondulações para optimizar a esfrega e, até, o recanto plano destinado a colocar a barra de sabão! Ficou, assim, funcionalmente idêntica aos tanques de cimento que, entre as décadas de 1920 e 1990, existiam em quase todas as casas de Lisboa e, também, nas vilas e aldeias circunvizinhas.

O olhar de lince do arqueólogo foi, todavia, mais além. E tantas voltas lhe deu que chegou a uma conclusão: a pedra poderia fazer parelha com outras (essas inteiras!) guardadas num museu próximo: o Museu Arqueológico de S. Miguel de Odrinhas!

O seu pormenorizado estudo científico vai, pois, ser apresentado em adequada revista, mas em Duas Linhas se optou por, desde já, mostrar as conclusões a que, do ponto de vista tipológico, se chegou, a partir da minuciosa observação do que ainda se pode observar.

Assim – e vou servir-me, com a devida vénia, dos dados que os dois arqueólogos de Mafra (Carlos Maneira e Costa e Marta Miranda) e Ricardo Campos, do referido Museu de Odrinhas, tiveram a gentileza de me proporcionar, o que mui cordialmente agradeço – essa pedra foi, primitivamente, a parte superior de um altar funerário romano, do jeito dos que por essas bandas existem, com quatro partes que poderiam ser autónomas e ajustáveis: a base, o fuste prismático (onde foi gravada a inscrição), a imposta e o capeamento (que é essa parte de cima, de que se dispõe). Uma sepultura monumental, de notáveis dimensões, portanto, que imita, na sua forma essencial e em ponto grande, uma ara que, originalmente, poderia ultrapassar os dois metros de altura!

altar funerário romano, Museu de Odrinhas, Sintra

As sucessivas amputações sofridas levaram muitos elementos que seriam essenciais. Contudo, foi possível estabelecer qual a orientação primitiva da peça.  Assim, pôde concluir-se que a face anterior, virada para o observador, acima do epitáfio, mostra, em dois campos rectangulares moldurados, simetricamente colocados, a representação de um peixe no interior de cada um, em posição ligeiramente oblíqua, com a parte dianteira erguida, e afrontados em relação um ao outro.

face frontal da pedra

«Não é fácil determinar a espécie dos peixes representados», afirmam os investigadores, «devido, em grande medida, à erosão da pedra»: sendo peixes fusiformes, aparentemente sem barbatanas pronunciadas, poderão pretender figurar sardinhas (talvez mesmo em tamanho natural, pois têm cerca de 14 cm de comprimento), o que nos leva a pôr a hipótese de que esta decoração possa significar estarmos em presença do túmulo de um indivíduo ligado à exploração de recursos marítimos, possivelmente à produção de garum e similares. A monumentalidade da sepultura é compatível com os recursos de um negotiator (assim se designavam os negociantes no tempo dos Romanos). E a sardinha teria, nesta zona, papel preponderante no fabrico de preparados de peixe, cifrando-se em 90 % a sua presença entre os resíduos ícticos recolhidos nas fábricas regionais, segundo os dados conhecidos.

Em conclusão, não parecendo viável serem esses peixes uma alusão ao Cristianismo precoce, crê-se que, com toda a verosimilhança essa floreira representa hoje o que resta da bonita pedra monumental que marcava a morada final de um mercador romano, «evidentemente com poder económico, ligado a actividades de exploração de recursos marinhos, os quais seriam, nessa altura, bem abundantes quer no grande mar Atlântico quer no então vasto estuário que circundavam a península olisiponense», concluem os investigadores.

face lateral do capeamento
sugestão de reconstituição

E, desta sorte, mais uma vez se prova como um olhar arguto e de experiência moldado é capaz de «moldar», a partir de algo quase informe, um monumento pleno de imponência.

4 COMENTÁRIOS

  1. Quando comecei a ler este texto, prezado José d’Encarnação, e a sugestão de várias metamorfoses sofridas por uma pedra-vaso, lembrei-me imediatamente de um poema da infância: “o destino da árvore”.
    As semelhanças vêm em sentido oposto, mas encontram-se na mesma finitude: aqui a pedra, que já fora parte de majestosa sepultura, veio decrescendo até se tornar num simples vaso que um perito arguto identificou…
    A árvore ia crescendo a olhos vistos até se tornar visível e potente, mas com o destino traçado da amputação final.
    Curiso também é que, na imagem da “face frontal da pedra”, eu tivesse visto logo sardinhas antes de ler a palavra, o que diz muito do realismo da representação a esta distância, assim como diz aos entendidos que a sepultura recebera os restos mortais de alguém ligado às actividades piscatórias, ou transformadoras do pescado.
    Acho fascinante todo este trabalho de pesquisa, reconstituição do passado, corrente que, desgastada com o passar dos séculos, ainda nos consegue aproximar.
    Um abraço.

  2. História interessante, a dessa pedra.

    “Na Natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma” – Lavoisier

    JOsé Azevedo e Silva

  3. De: Nair Castro Soares
    17 de junho de 2025 13:39
    Caríssimo Colega e Amigo:
    Em cada dia que leio os textos que nos chegam pelas tuas mãos, mais presente sinto essa paixão pela Antiguidade e pela cultura que salta aos olhos de verdadeiros iluminados cientistas – que integras com o maior mérito de conhecedor e divulgador inspirado. Bem hajas!

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