O imaginário da cidade de Viseu preenche-se com o descritivo de muitos episódios de matriz lendária.
Não é, pois, despicienda a narração dessa fantástica invenção do trágico voo de João Torto, sonhador, como Ícaro, na tentativa de conquistar o céu. Empresa não de todo vã, porque, apesar do fracasso destes efabulados tentâmenes, o sonho se mantém e anos virão em que se tornará realidade.
João de Almeida Torto é uma personagem criada de raiz, se crê, por Henrique de Matos Cid (clérigo e mestre-escola), natural de Viseu, onde terá nascido à volta de 1840, vindo a falecer na sua paróquia de Santos Evos (Viseu), em 1916.
Deste pároco, que o foi na cidade e na aldeia, se afirma que incarnou a imaginação mais louca que Deus ao mundo deitou, isto graças às múltiplas narrativas pelo mesmo criadas. Uma verdadeira mitografia à volta de Viseu, as quais deixou escritas nuns Velhos Papéis, mais tarde recuperados pelo seu sobrinho, João de Matos Cid, que irá dá-las à estampa, à sua maneira, num periódico de Viseu, o Distrito de Viseu, em 1937 e 1938.
João de Almeida Torto não passa de uma mítica figura, que vive adentro da cidade amuralhada de Viseu, bem perto da Catedral, ao tempo casado, sem filhos e que empreende, ao jeito de Ícaro, o sonho de voar.
É dito enfermeiro de um hospital que não existe ao tempo, pelo menos com a designação que se lhe atribui; e o cronista faz dele um visionário que ardorosamente se entrega à sua invenção – um complexo aparelho de voar (asas feitiças lhe chama!), composto de dois pares de asas, uma arquitectura de madeirame e linho e de argolas de ferro para amparo dos braços e sustentação dessa máquina voadora apenas por si guiada. Na cabeça, um gorro construído ao jeito de bico de ave para romper o ar; nos pés, calçado reforçado, para possibilitar aterragem sem incidentes de maior.
Na véspera, mandara lançar este pregão:
Saibam todos os habitantes desta cidade que não terminará este dia sem se ver a maior maravilha, a qual vem a ser um homem desta cidade voar com asas feitiças…
E, no dia 20 de Junho de 1540, diz a Crónica, a multidão invade o adro da Sé, enquanto o sonhador João Torto carrega os aparelhos para o alto de uma das torres da Catedral, de onde se atira em voo.
A narrativa diz que ainda voou por um contido tempo, até que o vento lhe fez descer o gorro sobre os olhos e uma das asas se recusou a bater, caindo com estrondo no chão, morrendo passadas duas horas, perdida a lucidez.
Sua mulher observava de longe, afirma o cronista. Incrédula do êxito da viagem, precavera-se, obrigando o lunático marido a fazer testamento a seu favor!… Morreu o homem. Ficou a fama. E o sonho que haverá, um dia, de tornar-se realidade.