FOGAÇAS, O PÃO COMO OFERENDA RITUAL

Tradição de Santos Evos, aldeia de Viseu

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O prolixo abade de Cepões, freguesia do concelho de Viseu, Carlos da Fonseca Pereira – que, em 1758, responde ao “Inquérito” do Ministro do Rei, depois compilado com o título de Memórias Paroquiais – ao descrever, como se lhe ordenava, as ermidas e romarias e quem a elas concorria diz

Que no dia da Santa [Santa Eufémia de Matos] acode a esta capella muita gente em romaje, e com fogaças por ofertas e devoções particulares”[1].

Nada esclarece, todavia, acerca da natureza da fogaça, que tanto poderia ser um pão especial fabricado no lugar como o quantitativo de cereal ajustado pela tradição. Em qualquer dos casos, ex-voto, uma gratulatória presença junto dessa medianeira do Divino, Santa Eufémia.

Ocasional indagação junto da Ex.ma Senhora D. Maria Augusta de Jesus Santos, natural e residente em Cepões, 69 anos acabados de fazer, permitiu constatar a permanência dessa velha tradição do oferecimento de fogaças a Santa Eufémia no dia da sua festa, 16 de Setembro.

Ela própria conta que, menina de seis ou sete anos, com o vestido branco ornado com o longo cordão de oiro da família que o pai, nesse dia, lhe ofereceu e eu vi agora repartido ao pescoço de suas filhas, ali foi de “fogaceira”, transportando à cabeça, na procissão, um leve cestinho de vimes ou canas, enfeitado com fitas coloridas. Lá dentro já não recorda o que levava, punhados de milho, talvez, com que seu pai, já viúvo à data, pagava à Santa, um qualquer “milagre” que fizera à sua menina.

Perdeu-se em Cepões, há alguns anos, esta tradição, substituída agora a fogaça pela menos brilhante “mortalha”, uma longa vestimenta com capuz que homens e mulheres envergam na demorada procissão, pagando à Santa, dessa forma menos poética, a mercê solicitada e concedida.

Uma anterior informação, obtida junto de D. Irene Nunes Almeida, natural e residente em Sernada, Santos Evos, actualmente com 90 anos, e junto de D. Maria Nunes Abreu, natural e residente em Santos Evos, permitiu constatar a permanência de uma tradição ex-votista em Santos Evos, com o oferecimento de “fogaças” à Senhora do Rosário. na sua festa do primeiro Domingo de Outubro.

Neste quadro, a fogaça destina-se a agradecer à Virgem uma graça previamente solicitada e concedida e, se inicialmente se constituiu como uma oferta de cereal, o milho, entregue aos mordomos no dia da festa e depois “arrematado” em leilão, cedo evoluiu para a entrega do mesmo cereal dentro de um cestinho que se armava com laços e fitas, depois transportado pela ofertante, que recebe agora o nome de “fogaceira”, durante a procissão.

Actualmente ainda tal acontece. Todavia, num quadro festivo e ritual, os quatro mordomos da festa anualmente nomeados fazem acompanhar a procissão por quatro crianças do sexo feminino, cujos vestidos brancos se adornam com os cordões de ouro da família, que transportam na procissão os cestinhos rituais encomendados a habilidoso artesão da vizinha freguesia de Fragosela com larga tradição na construção das emblemáticas flores de papel de venda em romaria.

Teria sido assim, em Cepões, já no século XVIII.

Manuel Fonseca da Gama na sua monografia Terras do Alto Paiva, publicada em 1940, ao referir-se aos “Costumes regionais” do actual concelho de Vila Nova de Paiva, descreve uma semelhante prática, a das “fogaças que rapariguinhas levavam à cabeça, açafatinhos de verga sobre os quais se armava uma espécie de dobadoira, cujos braços se ligavam por uma infinidade de fitinhas de seda multicolor com predomínio do vermelho e amarelo”[2]. Lá dentro continha-se um çormim [nome vulgar de selamim – um oitavo do alqueire]de trigo.

Frei Joaquim de Santa Rosa de Viterbo (1744-1822) refere, em seu Elucidário, as fogaças como prática votiva e acrescenta um pessoalíssimo comentário:

Poderia ser inocente e devota esta acção, quando meninas sem dolo e de poucos anos, singelamente as ofereciam; mas hoje que o desgarro e vaidade nos vestidos, a desordem dos costumes, e a formusura culpada e petulante fazem todo o fundo daquela cerimónia, porque não seria ela inteiramente abandonada por gente sisuda e portuguesa?”[3]

Mas ainda bem que não o foi em Santos Evos!…


[1]  OLIVEIRA, João Nunes de, Notícias e Memórias Paroquiais Setecentistas. 1 Viseu, Palimage, Viseu, 2005, p. 82.

[2] GAMA, Manuel Fonseca da, Terras do Alto Paiva, Memória histórico-geográfica e etnográfica do Concelho de Vila Nova de Paiva, Câmara Municipal de Vila Nova de Paiva, reedição de 2004, p. 302.

[3] VITERBO, Frei Joaquim de Santa Rosa de, Elucidário das palavras e termos…, vol. II, B-Z, Livraria Civilização, Porto – Lisboa, edição crítica por Mário Fiúza, 1966, pp. 275-276.

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