AMOLADORES DA PACIÊNCIA

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Um querido Amigo lembrava-os há uma semana numa excelente crónica – amoladores antigos e recentes – e desse encantamento que me envolvia na infância, retirava eu umas franjas luminosas que ainda acendiam o olhar e dilatavam o sorriso.

O traço de união entre eles era o tempo atmosférico, cinzento-escuro anunciando aguaceiros e aquela melodia chorosa de raízes orientais, tocada com pouca variação de notas.

A gaita de beiços passava a chamar-se harmónica bucal. A bainha das calças já não se prendia com molas de roupa. Só o invarável apito e o meio de transporte se mantinham, como símbolos de resistência de um mister secular.

Muito pequena já corria à varanda para os ver chegar, como se fossem poetas deixados num pinhal por uma nave invisível vinda das estrelas, a esfera da Poesia. E já montados nas bicicletas, ou apeados à espera de um serviço, angariavam umas moedas para o almoço frugal, porque família não deviam ter os poetas, achava eu…

Analogias à parte, levada pelos amoladores da nossa estabilidade emocional, lembrava-me que afiavam facas e tesouras diante dos nossos olhos pela magia de uma roda que fazia um ruído agudo de arrepiar. Mas havia um ou dois que apenas desafinavam, notas e instrumentos, desencadeando inesperada tormenta em vez de uma acalmia poética. Como aquele que ao colocar uns pingos nas varetas do meu lindo guarda-chuva, os ia deixando cair pelo tecido verde-lima que ficava um regador…

Passados anos voltavam. Morava então no último andar de uma casa grande, projectada na varanda de sete metros de comprido. Dali avistava mar até à foz do Tejo, a ponte sob um céu tão cinzento certo domingo, que ameaçava verter amoladores e bicicletas em quantidade bastante para encher a marginal.

Ouvia a melodia meio confusa do apito, corria à varanda das vistas largas que os prédios mais altos haviam de ir escondendo. Encostava-me ao ângulo mais chegado a Norte, o lado de onde vinha o som. Queria ver-lhe o aspecto, submeter os utensílios rombos da minha cozinha a uma operação estética. Afinal eram dois, um adulto de quase cinquenta anos e um adolescente a rasar os 13. Os cabelos não veriam pente há séculos. As roupas estavam amarrotadas, com pontas de palha ainda penduradas aqui e ali. A bicicleta era velha. Não tinha roda de afiar, teria?…

Parte das tropelias da vida acontecem por lhes abrirmos as portas da boa-fé. Hoje pergunto-me por quê? Prevenir é sempre a melhor forma de evitar. Fazia-lhes sinal para subirem. Vinha o garoto recolher o material para arranjar. Lá em baixo entregava-o ao mais velho, respeitando a hierarquia. Estranhava o homem virar e revirar as facas e tesoura de cozinha, como se lhe fossem objectos estranhos. Aqueles dois não vinham das estrelas…

Esperava que do alforge trazido a tiracolo, aparecesse uma lima, um afiador, uma ferramenta milagrosa que deixasse as minhas facas e tesoura lisas, mas qual quê! A uma ordem do mais velho o pequeno arrancava uma pedra meio solta do passeio, e entregava-lha com devoção. Depois, fazendo da beira do lancil ferramenta, “afiava” as facas enquanto o mentor, da parte larga, aproveitava cama estável para desatar à pedrada à minha pobre tesoura.

Sei, porque via, estarrecida, dois trogloditas com a roupa cheia de nódoas massacrarem os meus utensílios com violência inaudita, preparados para me deixarem as lâminas imprestáveis.

Ia lá dentro, mal-disposta. Interrompia as sanduíches com atum e ovo que amorosamente preparava para o miúdo e voltava. Perdia a vergonha e gritava já com público às varandas: “Alto aí, mas o que vem a ser isto? Vocês são amoladores, ou exterminadores de metal?”

“Blá, blá, blá …”gaguejava o mais velho em tom pastoso e aspecto embrutecido.

“Suba já o senhor e traga-me as facas e a tesoura sem demora”

Lá em cima a conversa azedava. Nada me convencia de serem profissionais. Olhando a minha pobre tesoura cheia de amolgadelas, atropelada por uma pedra como se fora por uma marreta, as minhas duas facas mais rombas do que podoa cansada de trabalho duro, estava capaz de o atirar escada abaixo, mas sempre queria ouvir…

“E agora, quanto lhe devo?”

“Bem, pelo arranjo da tesoura são 500 escudos, das facas são mais 500 cada uma, desgaste do material…”

“Mas qual material, seu asno? O Senhor desgastou foi o passeio”

O vizinho de baixo, um engenheiro muito amigo de novidades, passava para subir até à arrecadação onde, pretensamente, ia procurar equipamento. Diria depois à mulher, matemática, quando voltava a passar:

“A conta já vai em mil e quinhentos escudos…falta saber o desgaste do material.” E riam muito, conforme ela me contaria mais tarde. Devorado pela curiosidade ainda voltava a passar para ouvir o estado das negociações, mas o troglodita, mal atirava mais quinhentos escudos para manutenção da bicicleta, ficava mudo quando eu, tão alterada como o tempo, o ameaçava com a polícia para o fazer pagar as facas e a tesoura arruinadas.

O miúdo era o primeiro a desaparecer. O outro seguia-lhe o rasto sem demora.

Ainda os via saltarem do passeio para a rua, o mais velho ja montado na bicicleta desconjuntada, o miúdo a empurrar vermelho como um tomate. E com aqueles dois lá iam as minhas recordações de infância estraçalhadas para o resto da vida.

Quando voltava para dentro via as sanduíches do miúdo. Tinha pena, mas não ninguém poderia consertar a vida dele, enquanto tivesse o outro como mentor.

Hoje continuo a sofrer consequências de impulsos altruístas. Se me livrei de amoladores de tesouras, não escapei aos da paciência que nascem como cogumenlos ao tronco do mais pequenbo vislumbre de simpatia.

Arrenego-os. Estragam-me a orientação do caminho para as estrelas.

amolador de facas, de Goya

2 COMENTÁRIOS

  1. Agora que a cronista escreve sobre eles começo a lembrar da minha infância e das poucas notícias que chegavam. A vinda destes amoladores era um acontecimento quando apitavam vinha miúdos a correr atrás deles.
    Só me lembro de terem um aspecto pobre e de falarem pouco, uma vez um pediu um copo de água e trazia os bolsos com maçãs talvez a refeição do dia.
    Gostei de voltar ao passado com esta crónica a um tempo já quase esquecido e queria pedir que fosse mais assídua. Obrigado por voltar aqui com histórias que trazem a infância

  2. Ainda passa um amolador pelo meu bairro suburbano de Cascais. Ouvi-o a semana passada; mas nada tinha de momento para afiar. Os dois talhantes mais antigos do bairro – que o foram até há uns 20 anos, se não erro – não hesitavam e davam ao que vinha as facas para amolar. Nós, de vez em quando, as tesouras. Não sei se é o mesmo de há décadas; mas consola-me ouvir a sua flauta de Pã. Primeiro, porque me faz retroceder uns anos; depois, porque me consola saber que mantém uma profissão passível de cair em decadência.
    Fez bem Helena nesta sua evocação, ainda que nada lisonjeira para os dois aldrabões.

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