Da autoria do eborense Francisco Carvalho Rosado (n. 1942), o volume tem três partes. Traça-se, na 1ª, um panorama do contexto histórico que, em meados do século XVI, em Portugal, levou à criação deste tribunal eclesiástico; explica-se, na 2ª, o seu modo de funcionamento e objectivos que prosseguia; e referem-se, na 3ª, depois de brevíssimo apontamento sobre a história de Cascais, os 53 processos que constam no Arquivo Nacional da Torre do Tombo referentes a pessoas de Cascais.

São, originalmente, documentos manuscritos, nem sempre fáceis de decifrar, inclusive devido às diferentes mãos que os redigiram e, por conseguinte, o trabalho do autor foi não apenas o dessa decifração mas também o de nos fornecer o necessário enquadramento histórico, que soube haurir na vasta bibliografia consultada e de que nos dá conta no final.
Identificam-se os inquisidores (geralmente bispos ou elementos eclesiásticos); descreve-se o processo habitual do interrogatório e as fórmulas nele usadas.

Circunstanciados quadros sinópticos permitem-nos ter, de imediato, uma ideia do que aconteceu. Assim, as acusações versaram os crimes de prática de judaísmo e islamismo, solicitação (o que hoje se chamaria ‘assédio’!…), sodomia, bigamia, feitiçaria e, de um modo geral, actos ou palavras que beliscassem a fé cristã. Também havia meticuloso processo de recolha de informações acerca dos pretendentes a ‘familiares’ do Santo Ofício, ou seja, daqueles que se candidatassem a fazer parte dos agentes e que, por isso, não deveriam apresentar mácula e tudo das suas vidas era devidamente esmiuçado.
SEXO NO CONFESSIONÁRIO
Há, portanto, material – não muito abundante, diga-se – para se ter uma ideia de como (mal) se comportaram alguns elementos da população cascalense. Sim, que para um período de 250 anos, 53 processos é manifestamente pouco! Porventura, alguns casos terão ficado ‘atabafados’ e há que recordar que se trata de um tribunal de cariz religioso, isto é, julga-se quem vá contra a prática religiosa do Estado. E insere-se aqui a palavra Estado, porque não há dúvida ser boa parte dos processos – nomeadamente os contra os cristãos-novos (a tal acusação de judaísmo) – motivada mais por motivos económicos (a 1ª sanção era sempre o confisco dos bens, ora já se está a ver!…) do que propriamente por razões religiosas.
Assinale-se que, nesse contexto, o «segredo» da confissão desempenhou papel importante – já o Doutor José Pedro Paiva tivera ocasião de o assinalar – porque, embora «segredo», algo transpirava daí. Mas nem sempre o que de ‘anormal’ se passava no confessionário seria divulgado, para (dir-se-ia em linguagem corrente) se não ‘matar a galinha dos ovos de oiro’!…
Desse âmbito há uma das narrativas, porventura das mais ‘curiosas’, referente ao Padre Domingos Rodrigues Leitão, de 35 anos, que ficou, por tal motivo, proibido de voltar a confessar mulheres, e que assim se descreve:
«… ficando ambos sós dentro no dito oratório perguntou ele confitente à dita Tereza de Jesus se se queria confessar, ao que ela respondeu em forma que ele percebeu que a levava ali a malícia e não a devoção, e sentando-se ela junto a ele estiveram assim conversando em práticas amatórias, e ele esfregou nas mãos pondo-lhe também as duas no rosto dela, e se ajustaram para outra ocasião consumarem o fim do seu afecto, como com efeito fizeram daí a alguns dias, e enquanto durou esta prática amatória lasciva para persuadir em que havia confissão sacramental apenas» (p. 99).
Nessa mesma página se conta que o Padre José Neto da Veiga «recebera um escrito de amores» e que, na sequência disso, «fingindo ouvir confissão sacramental», tivera «práticas amatórias» e «tocamentos lascivos».
Estes são dois dos apenas quatro sacerdotes referenciados em processo e todos do século XVIII. Anote-se que, de resto, ter comportamentos amorosos só era crime se concretizados em ambiente de confessionário; fora, era pecado.
TORTURAR CRISTÃOS-NOVOS
Não se encontrou condenação à fogueira. Degredos há vários; obrigação de envergar hábito penitencial e pagamento de custa são os castigos mais correntes, além do referido confisco de bens.
Havia, porém, instrumentos de tormento para obrigar os incriminados a confessarem e, sobretudo, a denunciarem outros, porque a denúncia era muito bem vista sobretudo em relação (imagine-se!) a «pessoas chegadas e conjuntas em sangue e a que tenham particular afeição». Aliás, compreende-se ser fácil essa espécie de «fiscalização social», numa altura em que a vida na rua era corrente e, numa terra, todas as pessoas se conheciam bastante.
«O ‘potro’ era uma estrutura rectangular, que tinha ao todo oito cordas que amarravam o réu, duas por cada membro». Accionava-se uma manivela para ir aumentando a tensão, se o réu resistia e não confessava. Estava presente um médico, para avaliar a capacidade de sofrimento sem que as fibras musculares ficassem inutilizadas.

Na polé, o outro instrumento, «a vítima era suspensa pelas mãos numa roldana presa ao tecto, com pesos nos pés. Depois deixavam-na cair com violência sem tocar no chão» (p. 90).

Em relação a motivos de condenação, para vermos quanto nos separa desses tempos, além de, por exemplo, ter sido considerado acto contra a fé um grupo ter, um dia, simulado, em jeito de comédia, uma cerimónia religiosa, estoutro, de José dos Santos Rebelo, capitão do navio Nossa Senhora do Bom Conselho, é significativo. Ora aconteceu que, em determinado trecho da viagem, para o Brasil, ao ver que as coisas não estavam a correr de feição, o capitão perdeu as estribeiras e «entrou em desesperar-se e a proferir palavras escandalosas, malsoantes, heréticas e isto não uma vez se não muitas e em diversas ocasiões, estando sempre em seu perfeito juízo». E quais foram, então, esses impropérios? «Que Deus não era de misericórdia»; «Que o diabo levasse o vento»; que, da próxima vez, antes de embarcar, iria consultar uma feiticeira; que Santo ANTÓNIO era um bom traste e «que lhe havia de marrar com a cabeça pelas amuradas do navio».
Enfim, exclamar-se-á: outros tempos, outras ideias! E quão condenados seríamos nós, hoje, todos os dias, mormente quando nos apetece verberar, ao jeito que sabemos, os detentores do Poder. Sim, porque isso da Inquisição não mais era, no fundo, do que uma questão de… Poder!