“A nossa nobre missão civilizadora”

Proponho um exercício muito simples: dê uma olhada com atenção para o espaço que a/o rodeia, em casa. E pense: de todos os objetos que vê, quais efetivamente têm alguma utilidade…

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Abra as portas do roupeiro, conte as calças, vestidos, casacos, camisas, camisolas, sapatos, etc. Pergunte-se e responda: preciso de tudo isto para viver bem?

Se por acaso está num centro comercial, basta caminhar olhando as montras, para cumprir, com sucesso, o exercício de reflexão que proponho nesta crónica. Quantas lojas de inutilidades! 

Se a leitura lhe provocou algum incómodo, refugie-se no pensamento habitual: eu não! Eu não sou consumista, só compro o que preciso, separo os lixos, entrego sempre as roupas que não visto, na igreja, nas lojas sociais ou nos pontos de recolha. Eu não!

Pois eu digo: todos nós SIM e esse é O PROBLEMA.

A obsessão produtivista e a febre consumista, os dois pilares do capitalismo, o modelo de desenvolvimento que diariamente nos é vendido, serão, a curto prazo, a nossa sepultura.

A produção infinita de mercadorias é o modelo económico que grassa por todo o mundo, graças à globalização feliz, que os países do G7, G8, ou G20, festejam nas cimeiras.

O absolutismo económico do capitalismo, num mundo cada vez mais ameaçado de acabar, tem uma história curiosa. Depois de séculos de pilhagem de recursos do sul pela civilizada Europa, vieram os anos das trocas desiguais, depois das independências, mantendo-se a desigualdade norte/sul. Seguindo o nosso exemplo de sucesso, o sul global adotou o mesmo modelo económico, reproduzindo a divisão da sociedade em classes, sob o guarda chuva da democracia política. A missão civilizadora da Europa traduziu-se, onde pode, na reprodução desse modelo. Pois não é a Índia, com os seus 1500 milhões de seres, designada como a maior democracia do mundo?!

Ensinamos um modelo da economia contra a natureza e contra a sociedade. Ignoramos as diferenças sociais, desdobramo-nos em organizações humanitárias, para apaziguar a nossa culpa, pugnamos pelas liberdades como valores supremos, escondemos as misérias em lugares onde não nos incomodem.

E não bastando séculos de exploração, seguidos dos tempos de trocas desiguais, nos últimos anos, exportamos para o sul global os nossos resíduos, tornando-o a lixeira dos excessos do produtivismo.

As imagens do deserto de Atacama, no Chile, são o reverso da imagem que lhe propus no início desta crónica: aí acabam os milhões de peças de roupa da moda, bem escondidos dos nossos olhares.

Nós? Nós não! Nós fazemos parte daqueles que têm direito a peças novas em cada estação. Daqueles que têm direito a um mundo limpo, aos paraísos nos mares do Sul, a gozar uma boa vida. Somos do norte, da Europa, cumprimos, na história, a nossa nobre missão civilizadora, ensinamos os bons modelos a povos que viviam em estado selvagem. Construímos-lhes igrejas, ensinamo-los a rezar.

Ensinamos-lhes o melhor do capitalismo e ainda os presenteamos com 11 milhões de toneladas de lixo diário (dados de 2016), criamos ilhas de resíduos de plástico, e jardins Gramacho (a ironia do nome desta enorme lixeira no Brasil é gritante) onde crianças e adultos vasculham lixo reutilizável. Nesta e noutras lixeiras, onde centenas de pessoas desmantelam resíduos tecnológicos, expostas a toda a espécie de toxicidade, para que nós possamos mudar de gadgets a toda a hora, atafulhar as casas com tralha fora de uso, para que as multinacionais tenham lucros obscenos, a máquina publicitária vendendo-nos continuamente inutilidades indispensáveis à nossa felicidade.

Ah! nós não! Nós tratamos os nossos lixos, reaproveitamos tudo, transformamos em novos bens todos os lixos! Até fazemos obras de arte com lixo!

E enquanto transformamos o sul numa lixeira, destruímos habitats marinhos e fazemos desaparecer espécies à velocidade de 200 a 2000 por ano, vamos entretendo-nos com a encenação, minuciosamente preparada para os media, da coroação do rei britânico, e, nos intervalos, a máquina publicitária nos aguça o apetite para mais um produto desnecessário, mas que nos deixa tão felizes! Ou aborrecemo-nos até à náusea, com os comentários à notícia requentada vezes sem conta dum ministro e dum governo que afinal ficam, apesar do puxão de orelhas do presidente.

Com paciência e sorte, fazendo zapping, talvez possamos ver umas imagens chocantes do deserto de Atacama, dos jardins Gramacho, ou da lixeira geral da maior democracia do mundo, a Índia, dos esgotos a céu aberto, limpos pelos dálitas. Mas podemos sempre mudar de canal!

Nós, que reivindicamos o direito a consumir cada vez mais, a gozar uma boa vida, a não sermos incomodados com lixeiras, que protestamos se não há recolha do lixo atempada na nossa rua, nunca assumimos a nossa quota de responsabilidade. E ainda olhamos com desdém toda uma humanidade condenada a fazer o trabalho de limpar o mundo. Uma humanidade, a quem calha o sujo, o lixo, as imundícies, os plásticos que invadem os oceanos, para que o norte tenha cidades limpas e jardins floridos onde possa viver serenamente.

Em vez do minuto verde, ou dos programas fora de horas na RTP 2, nos quais os coletores de lixo e toda a imundície é tratada com a dignidade de grande notícia, uma vez na vida gostava de ocupar um lugar no qual pudesse decidir que todos os telejornais de horário nobre passariam a abrir com notícias sobre o lixo. O nosso lixo, que continuamos a varrer para debaixo do tapete.

1 COMENTÁRIO

  1. Pungente e mui oportuno grito de alerta. Hoje mesmo de manhã ouvia eu pelo telefone: «30 anos a pôr coisas no sótão! Já imaginaste o que é agora, ter de mudar de uma vivenda para um T2 apertado? Eu quero dar livros, por exemplo, mas na Biblioteca Municipal só aceitam se cada livro levar a respectiva ficha feita. Achas que, sozinho, com quase 80 anos e o cônjuge com Alzheimer, eu vou dedicar-me a fazer fichas? Vai tudo para o contentor, claro! Roupas, sapatos, loiças a mais, isso dou…».
    Tem, pois, inteira razão Alice Marques. E que não lhe doam as mãos!

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