Minha tia paterna Maria José (Marizé como era conhecida), falecida há vinte anos, com 90 voltas ao sol, foi uma mulher notável. Criou duas filhas, sozinha, cuidou do pai quando ele envelheceu, deu-lhe sepultura digna.
Como todas as mulheres que recordo, da minha aldeia, trabalhava a terra , seis dias por semana e ‘guardava’ o dia do senhor.
Para descansar? Não. Para dedicar-se ao seu negócio dos tremoços. Aos domingos, de caixa de alqueire à cabeça, percorria os mil metros bem medidos, do cruzeiro ao terreiro, fazendo soar na sua voz grave: “Tramoceira!”
Umas horas bastavam para, porta a porta, rapar até ao fundo do alqueire, aquela iguaria dos domingos. Tremoços eram o marisco dos pobres, acompanhados não com cerveja, mas com um tinto da Bairrada, quando ainda nem sequer havia esse nome de região demarcada. Era tinto, simplesmente.
Trabalhou duramente na terra e como “tramoceira”, sem nunca pagar impostos, palavra que desconhecia. Ser analfabeta não a impediu de ter um negócio, durante décadas.
A revolução de Abril apanhou-a com meio século. Não a entendeu. Mas soube que foi graças a ela que a certa altura da vida começou a receber uma pensão. Talvez só a caixa mágica da televisão a tenha intrigado mais do que receber uma pensão do Estado. Dizia com frequência, que a pagar assim pensões a “pessoas que nunca tinham trabalhado”, o Estado ia à falência. Nos anos em que viveu a receber pensão, foi guardando dinheiro debaixo do colchão, deixando assim uma herança às filhas.
Quando recentemente ouvi a ministra da segurança social anunciar os montantes atribuídos às pensões, pensei na minha tia Marizé. É certamente nestas Marizés do tempo dito “da outra senhora” que a senhora ministra pensa quando anuncia, com rasgado sorriso, fantásticos aumentos de umas dezenas de euros. Sabe que meio século de ditadura ainda não foi subvertido por meio século de democracia. Muitas Marizés do povo português ainda pensam que aumentos de umas dezenas de euros aos pensionistas pode levar o Estado à falência, porque não alcançam a compreensão do que são milhões e milhares de milhões de euros.
Ah! Se compreendessem! Então sim, fariam uma verdadeira revolução!