Quando mercenários e voluntários se juntam…

(atualizado em 11/08/2022, 10:44)

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Ativa na década de noventa, e relançada em 2009, a Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso (APAR) tem exercido uma intensa atividade em prol da dignificação da justiça e da reinserção social dos reclusos e de suas famílias, em estreita ligação com quantos, a título individual, coletivo ou oficial, pretendem honrar os mesmos fins.

Apoiada em personalidades de incontornável percurso cívico, como Garcia Pereira, António Arnaut, Nandim de Carvalho ou Rui Nabeiro, a APAR é hoje uma das mais prestigiadas ONGS de Portugal e, seguramente, a mais popular entre os reclusos e suas famílias, vítimas de frequentes abusos e atropelos.  

Honrosa exceção no panorama nacional do voluntariado, os seus colaboradores agem benevolamente e nem sequer são ressarcidos de despesas pessoais. Trata-se, pois, de uma associação “raríssima” que, para garantir total independência, nem aceita subsídios oficiais e recusa o pagamento de quotas a milhares de reclusos, espalhados por todos os 49 estabelecimentos prisionais, bem como subvenções dos seus familiares ou representantes legais.

Na APAR nunca se discutem crimes, ou a justeza das decisões dos Tribunais, simplesmente se dá resposta pronta a inúmeros pedidos de auxílio, procurando fazer o bem sem olhar ao melindre das questões e ao “peso” dos intervenientes. Procurando, tão só, minorar desavenças e em defesa de direitos elementares e da lei, a APAR orgulha-se de nunca ter sido alvo de processos. Ao invés de algumas das instâncias públicas que contraditou e que, alardeando credibilidade e razão, têm acumulado vivos reparos e até pesadas penas em fóruns nacionais e internacionais, defensores da Justiça e dos Direitos Humanos. 

Desde o século XIX que, em Portugal, a principal função das prisões não é punir, mas sim preparar os condenados para uma futura reinserção na sociedade. Uma vez sob a tutela e proteção do Estado, o recluso apenas perde a liberdade, mas são-lhe garantidos todos os demais direitos inerentes à sua dignidade humana. Compete assim às entidades responsáveis implementar regulamentos e programas que promovam uma formação ética e profissional e não o ócio, o ódio, o desespero e o desprezo pela lei.

As prisões nunca poderão ser consideradas “estâncias balneares”, mas, visando em primeiro lugar a inclusão e não o castigo, nelas se deve estimular uma cultura que promova a aproximação e condene o livre arbítrio e qualquer abuso. Sem respeitar e fazer respeitar escrupulosamente as leis que regem o cumprimento das penas, como pode o Estado dar o exemplo a cidadãos precisamente “castigados” por incumprir leis? 

Interessa ainda referir que sendo Portugal um dos recantos mais seguros do mundo, mantém uma altíssima taxa de reclusão e todos os indicadores o projetam para a cauda da Europa, junto com o Azerbaijão, a Bulgária e a Moldova. Contra a corrente, deixaram-se degradar instalações sobrelotadas, desmotiva-se a formação académica e profissional dos reclusos e até a sua alimentação é deficiente, enquanto se abandona o cultivo dos campos, se adquire comida confecionada em empresas privadas, se praticam preços especulativos nas cantinas e se filtram indecorosamente as ajudas familiares. As taxas de morbilidade, mortalidade e de suicídio falam por si, situando-se entre as mais altas do mundo: superiores, por exemplo, às da África do Sul.

Verdades incontornáveis que não evitam que, a pretexto da pandemia, a DGRSP prolongue medidas desajustadas ou mesmo absurdas, variáveis de prisão para prisão, que ainda mais agravam a já condenável condição dos reclusos, ainda vítimas inocentes de centenas de dias de greves. Na prática, a lei que regula a execução de penas encontra-se suspensa, com o sistema a limitar, sem fundamento válido, saídas precárias e até a reapreciação de processos. E também o direito às visitas foi altamente condicionado, existindo reclusos que, desde há anos, não conseguem abraçar ou sequer ver alguns entes queridos. Acresce ainda que inúmeros pacientes se encontram em risco de vida, sem uma assistência médica e apoio mental à altura de um estado civilizado.  

No entanto, apesar de serem incontornáveis estas e outras verdades, e do extenso rol de denúncias e reparos que a APAR tem formulado, estes horrores têm sido desprezados por uma classe política, que pensa mais em tratar da sua vidinha do que em melhorar a vida dos cidadãos. Solicitado recentemente a representar a APAR, em dois encontros que visavam melhorar o sistema prisional, tive ocasião de deparar com um “mundo” que de todo desconhecia.

A título pessoal, entendo ser meu dever dar conta das notas que recolhi sobre o ambiente que se respira na DGRSP, bem como nas organizações congéneres da APAR que, alegadamente, exercem “voluntariado” na área da reclusão, embora sob a dependência e apoio de instituições oficiais: 

1 – Existência de forte tensão entre associações de solidariedade que prosseguem idênticos fins, com graves acusações de favorecimento na atribuição recente de apoios oficiais a ONGS sem presente nem passado, em desprimor de outras com notável intervenção social e inquestionável interesse público.  

3 – Desconfiança generalizada perante o “falhanço” de anteriores iniciativas da DGRSP, que malbaratou fundos em cursos de formação sem nexo, até nas áreas de combate a incêndios. Paradoxalmente, ou talvez não, as entidades que promoveram e dirigiram tais iniciativas, opuseram-se depois à intervenção no terreno de centenas de formandos, invocando razões de segurança.  

3 – Muitas reservas sobre as intenções de uma DGRSP que, num desses encontros, anunciou um novo programa de formação, supostamente com recurso a fundos europeus, e destinado a cerca de setenta (70) voluntários de todo o país, que, só assim, obterão credenciais para entrar nas prisões. Desconhece-se para fazer o quê e onde, mas foi dado a conhecer que tal iniciativa passa pela intervenção de inúmeros formadores da “casa”, já “recrutados” a todos os níveis.   

4 – O reduzido impacto internacional desta proposta na CE, demonstrado pelo exíguo número de respostas a um inquérito que a DGRSP promoveu. Os 40 EP portugueses, que atempadamente responderam ao inquérito oficial, suplantaram a restante amostra, afanosamente dirigida a todo o espaço europeu.

5 – Curiosamente, os países que “mais reagiram” não integram o grupo daqueles que, por bom funcionamento do sistema prisional, dispensam “voluntariados”.

6 – Também motivo de séria reflexão, só a Hungria se fez representar nessa reunião. Significativamente, este é o país onde os direitos humanos mais se têm degradado, sendo ainda reconhecido por liderar o apoio a medidas desestabilizadoras, por todo o lado. Já quanto aos seus indicadores de Saúde, incluindo nas prisões, revela, a par de Portugal, o maior estado de degradação recente, em toda a Europa. “Má companhia” em termos de corrupção, é o único país que viu cortes comunitários.

7 – Ausência de demonstração de um plano coerente de ação, com definição clara de cumprimento de objetivos a curto e longo prazo, bem como o seu financiamento e a monitorização de resultados por entidades independentes. 

8 – Finalmente, assistiu-se ao corte de intervenções que intentaram elencar os principais problemas que afetam a comunidade prisional, e até à negação de realidades do dia a dia, não transparecendo de qualquer exposição que, em momento algum, tenham sido ouvidos os principais interessados que, afinal, até são os reclusos.  

Em jeito de síntese, mercenários e voluntários até rimam, mas dificilmente dão versos de jeito.

3 COMENTÁRIOS

  1. “Interessa ainda referir que sendo Portugal um dos recantos mais seguros do mundo, mantém uma altíssima taxa de reclusão “. O facto de Portugal ser considerado um país dos mais seguros do mundo talve seja consequência dessa altíssima taxa de reclusão, já colocou essa hipótese?

  2. Caro Miguel: Já coloquei essa hipótese, que não corresponde à realidade. Os reclusos portugueses perigosos nem serão 40%: assassinos, pedófilos, psicopatas violentos, traficantes ou ladrões incorrigíveis. Há milhares de detidos, feitos da mesma massa que nós, que foram alvo de ciladas legais, que não pagaram multas várias, sobretudo de
    trânsito, ou apenas cometeram pequenos delitos e que deveriam ser alvo de penas corretivas. Há tempos, com a pandemia, libertaram bruscamente e sem cautelas 2000 reclusos. Só 17 reincidiram e alguns porque nem tinham para onde ir. Prender pilha-galinhas a torto e direito, para prevenir violência, não é doutrina em nenhum país avançado, sobretudo quando se entra ingénuo e se sai com a “escola toda”. Concordo consigo num aspeto: em países decentes, “mete-se na grelha”, e sem grande cerimónia, a malta do colarinho branco. Em Portugal, para baixar as estatísticas, anda quase tudo à solta. Concorda?

  3. Concordo quando refere a brandura das leis penais na repressão de crimes de colarinho branco. Infelizmente existem variados outros crimes, nomeadamente os crimes sexuais em que o legislador entende igualmente que não merecem uma sanção severa. Já para não falar da ficção do cúmulo jurídico, em que um indivíduo comete múltiplos crimes e apanha uma sentença que corresponde a uma média das várias penas a que corresponderia cada um dos crimes. O que será altamente encorajador para uma mente retorcida. Mas concordo que o alojamento dos reclusos deveria ser melhorado quando temos prisões que remontam ao princípio do século XX e que muitos dos presos poderiam ocupar-se com atividades de interesse colectivo sendo remunerados por isso.

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