Parte-se do princípio de que um “documento histórico”, por ser “documento”, sempre se encontra salvaguardado numa instituição pública ou privada que dele cuida a preceito. O documento histórico constitui, como a própria palavra indica, a prova dum facto passado ou o atestado da sua prístina realização. Tem, pois, esse valor de prova. E, por isso, suscita amiúda aquela vontade danada de o forjar, nomeadamente quando se pretende obter um objetivo concreto, como, por exemplo, demonstrar a valentia dos Lusitanos na luta contra os Romanos – e tanto André de Resende como Frei Bernardo de Brito foram exímios em fabricar, para esse efeito, inscrições à maneira romana.
Por conseguinte, a primeira questão que se levanta ao historiador diante de um documento é o de ajuizar do seu real valor: é documento original? Uma cópia autenticada? Ou um documento forjado? E aqui entra, de novo, a noção de valor como documento – pois também uma cópia pode ser documento a ter em conta, por ter… valor documental. As inscrições forjadas por Frei Bernard de Brito documentam a atitude da sua época.
O valor monetário situa-se num ângulo completamente diferente e não há, de facto, queira-se ou não, elementos que possam servir de padrão. Veja-se o caso das moedas: temos o valor facial corrente; mas uma moeda antiga ou rara detém um valor que nada tem a ver com o seu valor facial; e este varia consoante as contingências do mercado e todo um conjunto de circunstâncias que o podem envolver. Não pode existir um critério rigoroso para a labilidade do mercado, onde também questões sentimentais ou orgulho pessoal podem vir a ter influência.

Será, pois, com este espírito que importa analisar a discussão ora gerada em torno do valor a atribuir à carta régia assinada por D. Manuel I, autêntica, que oficializava a atribuição do título de Conde da Vidigueira a Vasco da Gama, carta recentemente posta em leilão, em Londres, pela Sotheby’s. O documento estava avaliado entre 150 mil e 250 mil dólares, tinha a base de licitação fixada em cerca de 94 mil euros, mas não houve quem se candidatasse à compra e também as autoridades portuguesas decidiram não investir na sua aquisição.
O assunto provocou a natural polémica, que chegou ao fórum histport. Valerá, pois, a pena transcrever as posições tomadas e os argumentos aduzidos até agora.
Cronograma da discussão no fórum histport
1 – Rainer Daehnhardt, 02-07-2025, 8.04 h
A “bronca” de os encartados peritos de documentação régia de importância histórica para a Nação Portuguesa terem considerado as estimativas da leiloeira Sotheby’s de Nova York, como sendo “absurda” é apenas prova da sua ausência de conhecimento dos valores que documentos históricos desta importância hoje atingem no mercado internacional. A estimativa dos leiloeiros foi desde 150.000 US $ até 250.000. Considero esta estimativa razoável, sem exagero nenhum!
Aquando da 17ª Exposição do Conselho da Europa, em Lisboa, em 1982, dirigi um dos cinco núcleos (o da Torre de Belém) e tive acesso aos valores de seguro que museus estrangeiros atribuíram aos seus mapas e documentos de grande importância, então enviados a Portugal.
Se esta Carta Régia assinada pelo próprio Rei Venturoso depois de uma negociata régia com o Duque de Bragança para este dar diversas terras à volta da Vidigueira e suas vilas a Vasco da Gama e seus futuros herdeiros, tivesse estado naquela exposição não me admiraria que a atribuição fosse ainda substancialmente maior.
Valores dependem de muitos factores necessários a ter em atenção. Por exemplo, se fosse a Presidência da Câmara Municipal da Vila da Vidigueira a ter de atribuir um valor monetário a tal documento facilmente o classificaria como valendo até um milhão de euros. Pelo menos, era esse o seu dever patriótico regional.
2 – Ricardo Charters d’Azevedo, 02-07-2025, 12:25
Pois, mas o verdadeiro valor é aquele que num leilão é obtido. Neste caso. a carta PARECE que não chegou a ser vendida. PARECE então que o valor atribuído está muito alto ou a carta não é verdadeira.
3 – Luís Esteves Pereira, 02-07-202 13:54
Os “verdadeiros” valores são sempre relativos, ainda mais quando são peçasúnicas, é o que alguém estiver disposto a pagar, neste caso acho que não chegou ao público alvo… A estimativa é bastante decente, é pena é que a Câmara da Vidigueira não tenha tido tempo ou sabido que este documento tenha ido a leilão, teria sido uma excelente aquisição para a Vidigueira! Provavelmente ainda vão a tempo de fazer uma oferta directa se contactarem a Sotheby’s…
4 – Rainer Daehnhardt , 02/07/2025 18:54
Achei interessantes e válidas as opiniões mencionadas. Há, porém, UM GRANDE SENÃO!!! Vivo uma espécie de “maldição” por estar munido de uma memória muito abrangente, que me leva, por vezes, a conclusões nada convenientes para os poderes estabelecidos. Sobretudo, quando há possibilidades de serem criticados nos seus pelouros, o fundamento das suas existências!
Ora vejamos. Nos anos 60 e 70 do século passado, adquiri muitas cartas régias, dando-me ao luxo de fazer colecções completas da 2ª dinastia (a Casa de Aviz, desde D. João I até D. António I, o Prior do Crato), que era a de mais interesse para mim. Da 1ª dinastia, os DOCUMENTOS SÃO TÃO RAROS, QUE NÃO VEJO HIPÓTESE DE HOJE EM DIA SE CONSEGUIR formar UMA COLECÇÃO DESTE PERÍODO! Da 3ª dinastia é relativamente fácil (a dos Filipes), mas não é muito procurada, embora também faça parte da História de Portugal. Aproveito a deixa e informo como se sabe se algum documento é dos Filipes em relação a Espanha ou das mesmas personagens, mas como Reis de Portugal: se for acerca de Portugal, o monarca assinava à portuguesa “EL REY“; se for em relação a Espanha, assinava “YO EL REY”.


Há muitos coleccionadores de documentos que se limitam em coleccionar as assinaturas dos monarcas lusos a partir da Restauração, ou seja de D. João IV (1640) até ao fim da Monarquia, D. Manuel II (1910). Lembro-me, por exemplo, de um livreiro alfarrabista me perguntar, nos finais dos anos 60, quanto eu pagaria por uma Carta Régia, escrita em pergaminho, assinada por D. Manuel I e dirigida a Vasco da Gama. Não ma mostrou, mas sabia onde estava, o que achei um tanto estranho. A minha resposta foi evasiva, porque não há regras acerca disso e, sem a ver e saber a proveniência, não faço promessas nem avaliações. Nos anos 70 do século passado, apareceram em Londres portulanos portugueses e foi-me dito que fora este mesmo alfarrabista que os entregou a um especialista deste mercado. Anos mais tarde, soube que estes portulanos tinham sido desviados de uma das maiores instituições portuguesas! Estas não desejam que se saiba que tal aconteceu. Preferem sofrer a perda em silêncio absoluto a admitir que falharam redondamente na segurança de tais peças e, não tendo provas concretas, também nada poderiam fazer.
Vender tais peças em Portugal estava sujeito ao perigo de alguém as reconhecer. Assim, não é de admirar que tenham saído da Europa e aparecido num leilão da Sotheby’s, em 1985, em New York. 40 anos depois, apareceram, de novo, na mesma leiloeira! Possivelmente nem saíram desta cidade, mas isto é secundário.
Instituições do Estado, por lógica e ética profissional, simplesmente não compram mercadoria de origem ilícita. Como a simples desconfiança é suficiente para rejeitarem a possibilidade de uma aquisição em leilão, nesta situação é preferível esconder um redondo “NÃO”, com o argumento de um valor estimativo elevado. O público em geral não necessita de saber em que valores tais documentos importantes estão a ser negociados. Mesmo assim, a instituição da qual a carta possivelmente foi desviada não a compraria, ponto final. No mercado, considera-se tal peça como uma peça “queimada “ e ninguém deseja assumir um risco.
Um amigo meu, há cerca de 2 anos, desejou adquirir, numa leiloeira do Reino Unido, uma carta em pergaminho, acerca do casamento de um monarca inglês com uma princesa estrangeira. A peça é bela e de indiscutível interesse didáctico; porém, não é documento único, visto que se conhecem mais quatro exemplares idênticos do mesmo casamento. Estes estão guardados em instituições britânicas. O meu amigo estava muito convicto de que teria uma chance em adquirir esta peça para o seu acervo particular. Meteu-se num avião, foi inspeccionar a peça e deixou uma oferta sua a uma funcionária na leiloeira. No leilão presencial não apareceu ninguém, mas um director da leiloeira tinha recebido uma quantia enorme de um Príncipe do Petróleo, para investir em peças belas, de grande interesse histórico. Assim, a carta de pergaminho foi adjudicada ao Príncipe das Areias, que nem a viu sequer, por £ 50 acima da oferta do meu amigo, que apenas recebeu a comunicação de que a carta fora vendida por uma oferta acima da sua. O meu amigo ficou um pouco menos triste quando lhe expliquei que a tais valores seria acrescentada a percentagem da leiloeira, despesas de transporte e seguros e para a desalfandegar em Lisboa teria de pagar o IVA. Em números redondos, evitou gastar perto de € 300.000… Tudo por, apenas, uma folha de pergaminho!




De: Antão Vinagre
5 de julho de 2025 19:47
Obrigado. Infelizmente o Estado Português está muitas vezes ausente em leilões de património que o deveria interessar.
De: Ana Leonor Pereira
7 de julho de 2025 21:26
Muito pedagógico!