Segundo a versão mais cinematográfica, na madrugada de 29 de novembro de 1807, Lisboa acordou envolta numa névoa de pânico. As naus rangiam no Tejo, as pratarias iam às costas de criados ofegantes, padres arrastavam crucifixos, e a corte empacotava o que podia enquanto o povo via o seu rei fugir.

As fontes históricas não poupam. Para o Moniteur Universel, D. João era um “covarde”. Para o Marquês de Alorna, um soberano sem honra. Para Alexandre Herculano, um exemplo de “pusilanimidade”. Ficou a imagem de um rei que abandonou o país para salvar a pele.


Mas como acontece com frequência na História de Portugal, a realidade é ambígua. A historiografia oficial construiu outra versão: a de que a transferência da corte para o Brasil foi uma jogada estratégica, quase visionária, que salvou a independência portuguesa num tabuleiro europeu dominado por um Napoleão imparável. Portugal, militarmente incapaz de resistir, teria apenas duas hipóteses: ser ocupado ou deslocar a soberania para onde a marinha britânica pudesse protegê-la.
Entre estas duas narrativas há o território cinzento da política. D. João não partiu apenas por medo; partiu também porque as circunstâncias não lhe davam muitas alternativas. E, no entanto, o povo que ficou, esse, não via geopolítica: via um rei que se evaporava no nevoeiro, deixando para trás um território sem governo, entregue ao saque francês.
Mais interessante ainda é o que veio depois. Portugal sobreviveu, mas a decisão que muitos consideraram cobarde desencadeou o princípio do fim do império português. A corte no Rio abriu os portos, modernizou a administração, elevou o Brasil a Reino, e transformou a colónia tropical na capital do império. E quando D. João, já velho, regressou a Lisboa, deixou no trono do outro lado do Atlântico o seu filho, Pedro. O mesmo Pedro que, poucos anos depois, iria declarar a independência do Brasil, contra as expectativas do pai, mas como consequência direta da transferência da corte.
Ou seja: a fuga que pretendia preservar o império acabou por fragilizá-lo definitivamente. A manobra estratégica que salvou a soberania portuguesa terminou como catalisador da autonomia brasileira.
Herói ou covarde, D. João VI não foi apenas o monarca que abandonou Lisboa naquele amanhecer frio. Foi, involuntariamente, o último grande arquitecto de um império que começou a desfazer-se nas suas mãos. Os destinos de Portugal e do Brasil separaram-se naquela manhã enevoada de 1807.



