A Relíquia é uma obra bem conhecida – faz parte do Plano Nacional de Leitura – não faltando nela referências aos romanos do tempo de Tibério (14-37 d.C.), pois era esse o príncipe no poder por altura da narrativa das aventuras e desventuras do bacharel Raposo, projectado mirificamente para a Jerusalém de então, a de Herodes Antipas e Pilatos. Naturalmente, não podemos exigir que Eça nos ofereça uma restituição rigorosa da Judeia na época de Cristo, preocupado antes de mais em criar um ambiente, como Simenon nas suas histórias. Provavelmente, inspirou-se tanto no que viu na sua viagem oriental como na obra de Ernest Renan, para criar o seu cenário orientalizante, em voga na época em que escreveu.
O que se conhecia realmente da Jerusalém antiga, essa cidade que teima em permanecer no centro da História, era relativamente pouco – deixemos isso para o sábio germânico da narrativa – o que permitia elaborar fantasias. Na verdade, muita da investigação inicial da chamada Arqueologia Bíblica foi iniciativa de amadores, como o General Charles Gordon, mártir do imperialismo britânico no Nilo, que tentou identificar os locais da Paixão.

O Segundo Templo, que o nosso Raposo e o erudito Dr. Topsius desejavam naturalmente visitar por motivos intelectuais de arte, de arqueologia, era o santuário reconstruído por Herodes, o Grande, uma geração depois da narrativa vítima de incêndio e posterior demolição após a Grande Revolta, com o seu clímax em 70, ano da tomada de Jerusalém pelas tropas de Tito, cujo desfile do espólio está representado nos relevos do arco do mesmo imperador, em Roma. O que ficou, sobretudo o Muro que sustentava a enorme esplanada onde hoje se levanta a Mesquita de al-Aksa, sobreviveu ao longo dos séculos como local especial de prece conhecido por Muro das Lamentações. Escavações complicadas e dificultadas por várias razões, nem sempre arqueológicas, têm permitido conhecer um pouco mais do que restou.

Com tudo isto afastei-me do tema principal destas Duas Linhas. Afinal, que nos disse Eça sobre a nossa Olisipo? Pouco e pouco correcto, o que numa obra literária não é pecado maior. Ao todo oito linhas na edição que utilizei, parcas de informações arqueológicas, precedidas por uma referência ao Tejo como rio claro, lembrando o camoniano claro rio banhando a montante a colónia de Scallabis, hoje Santarém. Como é sabido, A Relíquia teve uma evidente intenção crítica, tocada por um orientalismo à la page na época. O que Eça nos conta da Lisboa contemporânea de Tibério oferece uma imagem mais adequada a um castro, como o que Martins Sarmento escavava em Briteiros por essa altura, pois o que o autor recria é uma povoação medíocre, que Olisipo nunca foi. Fê-lo conscientemente, como um exercício de projecção retrospectiva, identificando a mediocridade provinciana de Lisboa, a inventora do pastel de nata, sempre alvo das suas críticas sociais, nem sempre cobertas pelo manto diáfano da fantasia, assim como também pouco se cobriria a Miss Mary da história.
Ao contrário de Cesário Verde, Eça não olha o Tejo sonhando glórias, exercício ensombrado pela presença de um couraçado britânico surto no rio, parte dos novos tempos, como o Times e o Gás, cuja distribuição em Lisboa foi internacionalizada por dificuldades financeiras, um ano antes da publicação de A Relíquia, sinal das coisas num país que perdera a Revolução Industrial (e outras). A referência a Olisipo resume-se, afinal, a um apontamento rápido, mordaz, necessário à narrativa.
Eça, se quisesse, podia ter recorrido a Estrabão, lembrando os grandes navios que frequentavam o porto – bem diferentes das jangadas que refere – ou ao episódio da legação enviada a Tibério, destinada a dar conta de mirabilia registadas no litoral olisiponense, como o avistamento de tritões e sereias. Quem no-lo conta é o sisudo Plínio, o Velho, depois morto na erupção do Vesúvio quando procurava socorrer os fugitivos. A propósito da embaixada enviada ao antecessor de Calígula, parece não ter sido outra coisa que não uma tentativa das forças vivas da cidade para chamar a atenção para os interesses atlânticos, num momento de impasse do expansionismo romano depois do amargo germânico da floresta de Teutoburgo – Varo, devolve-me as minhas legiões – clamava Augusto nos seus delírios de fim de vida.
Recuemos à descrição de Olisipo, onde não havia procônsul, embora o seu estatuto de município de cidadãos romanos, único na Lusitânia, lhe conferisse prestígio. Eça evoca a existência de um templo pequeno, de Marte ou de Apolo. Não temos provas de nenhum, e continuamos a ignorar quase tudo dos templos da cidade. Mais aceitável é a ideia de um campo militar nos altos, o que decerto significa a colina do Castelo, provável núcleo inicial da povoação lusitana, que desde cedo se estendeu à ribeira do Tejo. Embora a presença de uma reduzida presença militar seja admissível continuamos sem testemunhos seguros, embora se conheça nos arredores uma epígrafe funerária de um veterano, o que não prova nada, da mesma forma que outra inscrição, consagrada a Mercúrio Cohortal, se relacionará com a organização laboral de grandes armazéns estatais (horrea). Por altura da narrativa os Lusitanos eram gente pacata e usufruíam da sua posição no Império que lhes abrira novas oportunidades.
Depois, Eça fala-nos de caminhos agrestes, cabanas de pedra solta, alpendres para recolher o gado. Um castro, como tantos outros. Mais uma vez a imagem transmitida é de triste mediocridade, boa para exilados como Ovídio, caso fosse verdadeira. Não era. Nos últimos anos aumentaram os dados arqueológicos, quase sempre resultantes de obras públicas ou privadas, permitindo esboçar a estrutura portuária e as suas características como porto ocupado em exportar e importar. Conhecido há muito era o grande criptopórtico que sustentava um conjunto monumental no qual se viu um Fórum. Se esta hipótese não se confirmou, é seguro tratar-se de uma estrutura portuária, que possuía além de outras componentes, umas termas e talvez um templete, como sugere uma inscrição datada da época de Tibério, consagrada por dois augustais, sacerdotes do culto imperial, a Esculápio, deus da medicina.

Que o movimento do porto era importante garantem-no os materiais que se vão encontrando, muitos deles relacionados com actividades portuárias, caso das ânforas, bem como o notável corpus epigráfico olisiponense, facilitando a identificação de relações com outros portos da Hispânia e para além dela. Parte das instalações portuárias seriam simples, recorrendo largamente a estruturas em madeira, as estacadas em que se amarravam jangadas de que fala Eça, como já se comprovou em trabalhos na zona marginal do Cais de Sodré, solução habitual em portos do litoral atlântico, muitos deles flúvio-marítimos, como Bordéus e Londres, o que não limitou a importância do porto olisiponense, considerado entre os melhores e como último porto mediterrânico, unindo dois mundos marítimos distintos. Que os lisboetas não o esqueçam, pois ou turistas vêm e vão, o porto fica.
Tudo dito, parece mais que evidente a ideia de identificação negativa presente em Eça de Queirós, que, ao escrever anos antes uma crónica sobre a visita a Lisboa de uma flotilha norte-americana de que fazia parte o monitor Miantonomoh não deixou de exprimir o sentimento de que a superioridade europeia se encontrava no limiar de novas realidades, em que tecnologia e dinheiro constituíam a base, como um dia outras tinham chegado dos lados do Estreito, na senda das aventuras de Ulisses, ao qual os Humanistas gostavam de atribuir a paternidade de Lisboa.
No tempo de Tibério, imperador misantropo e todavia respeitador dos princípios de inspiração republicana ainda sobreviventes, Olisipo era uma cidade notável com um parque industrial consagrado à produção de preparados piscícolas, dotada de monumentos públicos que não seriam inferiores aos de outras cidades, como as Termas dos Cássios, nome de uma das mais importantes famílias olisiponenses, e o Teatro, parcialmente reconstruído por um liberto no tempo de Nero, o que demonstra o nível das actividades económicas desenvolvidas na cidade. Embora gerida por gentes oriundas da colonização e por indígenas romanizados, possuidores de villae nos arredores até aos confins torrienses, a classe dos libertos – como não lembrar aqui o truculento armador Trimalquião do Satyricon de Petrónio? – desempenhava um papel fulcral, como era vulgar nas grandes cidades portuárias.
Os monumentos da cidade desapareceram quase todos, e isso serviu bem as intenções de Eça, os terramotos e a permanente reutilização de materiais deixaram poucos vestígios visíveis que permitam uma reconstituição segura do seu urbanismo, compensado, por uma rica epigrafia, das mais importantes do Portugal romano, agora publicada de forma sistemática e luxuosa, passados que vão oitenta anos sobre a obra do olisipógrafo Augusto Vieira da Silva.

Se acaso o bacharel Raposo regressasse a Olisipo teria certamente encontrado outra Titi devota de alguma divindade oriental, que as havia na cidade, e, se quisesse frequentar menos as Termas e as suas redondezas, e trabalhar, com certeza encontraria um emprego melhor que pastorear, varrer ou rachar lenha… e talvez até uma complacente bailarina de Cádis em tournée lusitana.