A MALGA DE CALDO COMO “PÃO DE CADA DIA”

Viva memória de um tempo de infância

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No contar de hoje trago o brevíssimo episódio da chegada à velha casa da aldeia do brasileiro Manuel Louvadeus, que, há uns anos, partira para o Brasil, deixando os filhos ainda criança, história contada por Aquilino Ribeiro ao abrir do seu romance Quando os Lobos Uivam, essoutro vivo retrato das Terras do Demo.

Era lua-cheia, pelos fins de Março marçagão, na altura do ano em que os dias são iguais às noites, e pelo tinir dos garfos e pausas intermitentes assentou para consigo que estavam a cear. Miga bem a tigela, dizia a voz materna, amorável no seu sotaque ralhado. Miga bem, Jaime, que só tens caldo!

O prato de “sopa”, que se oferece agora sobre a branca toalha de uma mesa familiar, ainda à antiga, ou sobre a mesa de um moderno estabelecimento de restauração, traz à memória dos mais velhos esse identitário cerimonial, ritual quase se lhe pode chamar, da preparação e do sequente acto de uma das mais costumeiras e populares práticas de manducação que atravessou gerações – o fazer e o comer o caldo, como antes se dizia.

Caldo, lhe chamávamos. De calidum, palavra que lhe fica de raiz, quente da lareira na hora de servir, quente que ficava quem chegava, às vezes de caminho de neve ou de geada, quente do amor, que isso era o que ele mais simbolizava.

Servia-se ao lavrador sobre o chão da arada, da cava ou da vessada, servia-se na cozinha, sentados no escano, ao calor da lareira, entre mãos a malga às vezes esboicelada, e sobre mesa de festa, na sala mais honrada, com uma oração de permeio.

O caldo era componente primeiro da ceia de pastor, que uma criança levava, e a tigela, a malga de louceiro, que chegava no verão, ganhava quase o ser de um vaso sagrado em que o oficiante do mistério era sempre uma mulher, que antes se cumpria ao estendê-la a um pobre de pedir, a bufarinheiro de longe ou à vendedeira de louça vinda de Molelos ou essa outra que também chegava de Barcelos, que requeressem um canto de cabanal onde dormir.

De exemplaridade primeira, associação completa dos produtos da terra, a sopa de lavrador, agora por nós assim chamada, água da fonte e sal e batata, feijão, abóbora e grão, couve troncha e mais tarde em flor, nabo e o pé de porco a temperar ou o naco de toucinho ou o osso da assuã, chouriça também pode ser, e a manteiga caseira da feitura dos torresmos logo após a matança – este caldo, matricial, era a representação da terra inteira e era sinal de que o homem se fizera o seu senhor.

E o caldo de galinha que também havia, caldo de antes dar às mulheres em puerpério, e o caldinho de ovo com uns grãos de arroz ou de estrelinhas ou letras que davam para brincar, o caldo quase doce de castanhas, as berças de couve e farinha, e a água de unto, pobrezinha, que também às vezes vi servir.

A partir de Março, nas cavas da vinha, nas lavras da terra, nas regas, nas mondas, nas ceifas de Verão, nas malhas de Agosto, as lavradeiras preparavam os suculentos caldos de castanha, que alimentavam os homens no duro trabalho de sol a sol.

As castanhas piladas, martaínha ou longa, secas no caniço, eram o ingrediente primeiro.

Carne de porco, da salgadeira, era o conduto de temperar. Às vezes, feijão, para acrescentar e a cebola, que depois quebrava a doçura. E o sal. E a água da terra. E o pote de ferro e o lume do lar. E esse sábio fazer das mãos da mulher. E a tolha de linho estendida no chão, na sombra leve de um castanheiro.

E o caldo que ainda falta, em nossos dias, na mesa do almoço de dois milhões de portugueses!…

1 COMENTÁRIO

  1. De: José Azevedo Silva
    22 de janeiro de 2025 19:15
    Que belo naco de prosa a fazer lembrar a minha infância, bem caldeado pela malga e pela tigela de caldo.
    E a matança do porco! O meu Pai era um dos dois ou três matadores da aldeia de Tibaldinho.

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