A “nossa” KAMALA

Jamais me passara pela cabeça escrever uma crónica assim. Mas, como se diz em francês, noblesse oblige – e esta é ocasião privilegiada para defender a minha dama. Adiante-se, desde já, que não se trata duma senhora de carne e osso, mas de uma «dama» no sentido, aqui, de área de estudo. Não, na verdade ela não carece de defensores específicos, porque, no âmbito científico, tem pergaminhos válidos, muitos cultores e já se compreendeu que, apesar de um tudo-nada “esotérica” (para usar de um termo aliciante…), constitui, afinal, um campo de estudo de mui válidas perspectivas, inclusive a nível político. E quando se intromete a Política, certo e sabido que o tema se torna… «viral».

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2010

A Hispânia antes dos Romanos

Desde a Instrução Primária que nos apercebemos ter havido gente nas terras que são hoje Portugal, porque nos falaram das maldades que os Romanos fizeram a Viriato e a Sertório, assassinando-os à traição, para ocuparem o território que era nosso, dos Lusitanos. Pouco mais nos foi ensinado e ficámo-nos por aí: mau grado as traições, sobrevivemos e somos Nação oficialmente autodeterminada e reconhecida em 1143.

Esses livros nada nos contaram a sério dos povos da Lusitânia anterior. Só os estudos epigráficos, ou seja, as inscrições deixadas em pedra nessa altura nos elucidaram depois como é que as pessoas se chamavam, que preocupações tinham, que deuses adoravam. Foram esses achados que nos permitiram ficar a saber que nomes eram os usados e a que divindades os Lusitanos prestavam culto.

Viemos a saber, por exemplo, pelo livro do João Aguiar, A Voz dos Deuses – muito baseado na obra As Religiões da Lusitânia, de José Leite de Vasconcelos,que Endovélico fora uma divindade venerada por indígenas e por romanos, num santuário erguido no Alandroal.

Como se tratava de nomes estranhos, cedo os linguistas diligenciaram no sentido de procurar saber o que eles queriam dizer, sobretudo os dos deuses, a fim de se descobrir se eram deuses da chuva, de determinado rio ou os patronos de determinada cidade…

Os nomes das pessoas

A análise estendeu-se aos nomes das pessoas, para, estudando a sua etimologia, se tentar perceber se eram gente de cá e se descendiam de Celtas ou de Iberos. De gente vinda primitivamente do Centro da Europa ou do Norte de África

Compreende-se que, por detrás dessa investigação, também havia razões políticas: os do Centro de Europa gostariam que as gentes da Hispânia tivessem vindo dali, para, em caso de guerra, ser essa mais uma das razões para uma possível invasão. Não quis Napoleão dominar toda a Europa? Não foi essa também a ideia de Hitler? Não é essa, às claras ou às escuras, a ideia doutros imperialistas?

Ergueram-se, pois, os investigadores e, embora reconhecendo haver um mui alargado fundo linguístico indo-europeu comum, depressa se viu que nós, os deste Oeste hispânico, tínhamos nomes próprios, novos, que não pertenciam a mais ninguém!

E aqui – pasme-se! – um desses nomes nossos, muito nossos, era… Camalus!

No Atlas Antroponímico da Lusitânia Romana se mostra a dispersão dos mais de meia centena de testemunhos do uso desse nome, só na Lusitânia, sem contar os casos da região do Minho.

Pode citar-se o epitáfio de Camala Tai f(ilia), Câmala, filha de Taios, que viveu em Idanha-a-Velha no princípio do século I da nossa era.

Ou a dedicatória feita por Câmala, natural de Talábriga, a uma divindade indígena.

Os linguistas assinalam mesmo a possibilidade de o antropónimo Camalus ter uma etimologia específica, relacionável com o sentido de ‘luta’, ‘poder’.

Por conseguinte, já se está mesmo a ver: quando veio a lume a informação de que a candidata à Presidência dos Estados Unidos da América se chama Kamala, um nome deveras fora do comum, os investigadores entreolharam-se numa interrogação: afinal, como é? Donde é que veio este nome? Terá Kamala Harris um nome de origem pré-romana, indígena, da Lusitânia? Como foi possível o nome chegar ali? Por que estranhos meandros passou essa antroponímia?

Os dados estão lançados. Vamos lá ver como é que também esta batalha se desenlaça!…

15 COMENTÁRIOS

  1. Caro Amigo e Colega

    Segundo o que vejo no “Dr. Google” Kamala ou Kâmala, nome da vice-presidente dos EUA e candidata do Partido Democrata,«tem origem indiana e significa “flor de lótus”» e nada terá com o nome lusitano. Tratar-se-á talvez de uma coincidência, pois pode haver dois nomes iguais, em diversas partes do mundo, sem haver qualquer relação linguística entre eles. Por exemplo verifiquei, por simples acaso, que na Índia existe o meu apelido “Torgal”, como antropónimo e topónimo. Perguntei a alguns indianos que tinham o meu apelido e verifiquei que o nome ali significava qualquer coisa como “vereda aberta na rocha”, enquanto em Portugal será um conjunto de torgas, ou seja, uma espécie bem conhecida de plantas silvestres, parecida com uma urze.

    A minha resposta não tem, obviamente, qualquer pretensão científica.

    Grande abraço

    LRT

  2. Caro Luís Reis Torgal, vou meter-me na conversa, apenas para dizer que a relação entre a Kamala americana e as várias Camalas lusitanas é pela ironia e não por quaisquer dados históricos. E por isso o título tem a “nossa” Kamala entre aspas. Mea culpa, como editor deste site, se meti mal a foice na seara do historiador José d’Encarnação, mas a ideia foi apenas tornar o tema apetecível para um público mais alargado.

  3. Boa noite, passei por aqui e percebi que falavam da Kamala.
    Não sei por que razão, lembrei-me da Mofina Mendes. Embora o significado do nome de uma, remeta para delicadeza, segurança, beleza e o da outra, uma infeliz que ao quebrar o pote de azeite perde o direito a realizar os sonhos, parece-me que têm bastante em comum.
    Eu também votaria na Kamala Harris, mas só com muita consciência e união do povo (assim como se indígenas e romanos venerassem a mesma “deusa”) me parece que ela se livrará das ciladas dos loucos que não largam o osso.
    Se ganhar, haverá quem continue a chamar-lhe a “nossa”, ou homónima das nossas; se perder outros “desvalores” se levantam para chamar as atenções e passará ao nível das mofinas.
    Desculpem a minha intromissão sem jeito nenhum. Uma boa noite a todos.

  4. Agradeço ao meu caríssimo Colega e Amigo Reis Torgal a gentileza, que levou Carlos Narciso a pedir desculpa pela ‘intromissão’ para que estava devidamente autorizado. Mas não carece desculpa, porque, na verdade, segundo rezam os livros, o Kámala da Senhora Harris provém do sânscrito e teve o primitivo significado (bonito!) de ‘flor-de-lótus’, a tal que, de 100 em 100 anos, floresce apenas uma vez (dizem); Kámala está a florir agora. Acontece, porém, que houve uma passagem da crónica que poderá ter passado despercebida: «embora reconhecendo haver um mui alargado fundo linguístico indo-europeu comum». Ora, o sânscrito faz parte desse fundo linguístico comum indo-europeu!. «E esta, hein?!», diria o saudoso Fernando Pessa. Quem há aí que garanta que os Camali lusitanos não vieram desse estrato comum em que o sânscrito se insere? Por isso perorei: «Os dados estão lançados!».
    Agradeço também a colaboração da Helena, claro.

  5. De: Carlos Jorge Gonçalves Soares Fabião
    27 de agosto de 2024 07:51
    Belíssimo!
    Está explicada a razão pela qual eu votaria Kamala Harris se fosse americano, puro lobbysmo lusitano!… Ou seria por votar em não importa quem, desde que não seja Trump?…
    Forte braço
    Carlos

  6. De: Ricardo António Alves
    27 de agosto de 2024 01:35
    Viva!
    Um assunto que de certeza terá desenvolvimento, se a senhora vencer. Donald(o) também tem o que se lhe diga, não na Lusitânia, presumo…

  7. Junto aqui comentários que me foram pessoalmente enviados por colegas e amigos meus:

    De: aparecida
    26 de agosto de 2024 12:17
    Gostei muito do artigo.

    De: Marlene Guerreiro
    26 de agosto de 2024 11:49
    Muitíssimo interessante!! Fantástico mesmo, como sempre 😉

    De: António Carlos Silva
    26 de agosto de 2024 11:04
    Obrigado pela dica, bem apanhada.

    De: Marc Mayer
    26 de agosto de 2024 10:16
    Boa!!!

    De: Carmen Aranegui
    26 de agosto de 2024 09:42
    Muchíiiiisimas gracias José, es precioso y lo comparto Feliz fin de mes

    De: Ramirez Sadaba, Jose Luis
    26 de agosto de 2024 09:25
    Buena pregunta, José.
    Ahora, a investigar los antepasados de Kamala Harris

    De: mjesus kremer
    26 de agosto de 2024 08:59
    😊: giríssimo! Obrigada, Amigo!

    De: Francisca Chaves
    26 de agosto de 2024 08:52
    Qué curioso esta coincidencia de la Camala portuguesa!!!
    Como siempre, gracias por tus buenas informaciones y también curiosos detalles, querido José,

  8. De: Gualter Cunha
    26 de agosto de 2024 15:41
    Gostei de ler a nota sobre a Kamala. Parece que o nome vem do sânscrito: como daí vêm (ou por aí passam) todas as línguas indo-europeias, por que caminhos terá a Kamala passado até chegar à Lusitânia?

  9. Comentários a propósito do nome Kamala e do antropónimo lusitano Camala
    De: Manuel Martin Bueno
    27 de agosto de 2024 11:37
    Muy oportuno y divertido (pero serio) tu artículo sobre la “dama” Kamala.
    Esperemos que tenga suerte y los hados le sean propicios.
    ……..
    De: Rui Cascão
    27 de agosto de 2024 14:09
    O meu Caríssimo Amigo está sempre a descobrir e divulgar estas preciosidades.
    …..
    De: José Cardim Ribeiro
    27 de agosto de 2024 01:25
    Está bem giro! E muito oportuno! Parabéns!
    …………

    De: Elvira Bugalho
    26 de agosto de 2024 21:20
    Zé, mais uma vez um feliz desenrolar de saberes, de informações a propósito da americana “Kamala”.
    Bem espero que as nossas Camalas a inspirem e a levem a lutar e a vencer.
    …..
    De: Alexandre Sarrazola
    26 de agosto de 2024 16:03
    OBRIGADO ADOREEEEIIIIII!!!!!!!!
    ENSINAR, ENTRETER E DESTA VEZ UMA GARGALHADA MUY SALUBRE!!!!!
    Ando há 15 anos a pregar aos ventos: caramba! Eu quero uma mulher latina ou seja de que mistura for, democrata e inteligente naquele lugar.
    Agora desde que a nossa CAMALA está na corrida que todos os dias ao serão vejo numa horas as novas da CNN/ CBS/FOX (grrrrr) e afins.
    Por dentro exorto Kamala, Kamala, Kamala!!!!!!
    Mas a vida é AGORA! Kamala, Kamala, Kamala!!!!!!
    ….
    De: Julia Neves
    26 de agosto de 2024 14:22
    Curioso. A Kamala de cá e a de lá parecem ter afinidades.
    ….

    De: Antão Vinagre
    26 de agosto de 2024 13:29
    Fico contente por saber que posso ser parente de Kamala.
    ….
    De: vasco gil mantas
    26 de agosto de 2024 13:03
    Obrigado pela história da Kamala. Como a Srª é filha de mãe indiana é possível que o antropónimo também o seja. Parte desta população é indo-europeia. Outra parte, mais escura, é a população dravídica. Camala pode ser uma grafia adaptada de Kamala. Seria interessante verificar se esta grafia existe na epigrafia hispano-romana. Não faltam no Latim, como bem sabes, palavras que se podem relacionar directamente com outras, de igual sentido, na Índia antiga, Rex ou Regina, por exemplo. O G. Dumézil escreveu muito sobre estas questões indo-europeias. É bom estimular as pessoas a pensarem nas tão velhas ligações que existem por todo o lado, e insuspeitas. Quem se lembrará de relacionar Nacala, em Moçambique, com o inglês Coal, em resultado daquele pequeno porto ser um local de abastecimento de carvão para os navios do século XIX.

  10. Os celtas britânicos, gauleses e belgas tinham um deus Camulus, deus da guerra, equivalente a Marte. Camalus /Camulus.. a pronúncia desconheço por completo, mas não terá este antropónimo celta alguma relação com este deus? Pelo menos nas raízes da palavra?

    • Sim, amigo Frederico: é o mesmo radical, que, segundo os linguistas, contém em si a ideia de «força», neste caso, consubstanciada também no teónimo. Grato pela sugestão. Aqui para nós: será um bom augúrio para uma vitória de Kamala Harris?

  11. Com tantos comentários eruditos e entusiastas, já perdi o fio ao meu. Resta-me a conclusão: todos somos Kamala (ou Camala, aqui não faz diferença …), todos votamos Kamala! Bem hajas por essa “forcinha”, que espero que a América agradeça também!

  12. Muito bom dia de Sol e calor no Douro nacional/internacional.
    Ainda bem que todos os que percebem dessas coisas antigas e linguisticas estão atentos.
    Oxalá que esta Senhora que se candidata a Presidente dos Estados Unidos aparece e aceita
    a guerra com um proposito válido.
    Falar do seu adversário (???) nem vale a pena gastar palavras pois como dizia o meu Sábio
    e especial Amigo MARIUS LABRATOR (que muito pouca gente conheceu…ou conhece os seus
    escritos…) dizia….Haver muitos animais que falam….
    Esperemos é que a população Americana acorde de vez…
    O planeta está em mudança para LIMPEZA, pois a porcaria é tanta que o Universo(???) não
    pode continuar a ter contemplações com as porcarias que os ditos machos fazem em nome
    de falsas democracias…

  13. De: Vanda Fernandes
    30 de agosto de 2024 20:09
    Mas que mensagem espectacular!!! Só mesmo a tua cabecinha epigráfica descobria semelhante preciosidade!!! Adorei!!! Só peço desculpa pela minha resposta tardia, mas a verdade é que estou demasiado anosa para usar meios tecnológicos.

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