Uma estranha bóia de pesca!…

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1930

            Carlos Monteiro não passava fim-de-semana sem o passeio pela orla de Cascais ao Guincho. Abeirava-se do mar aqui e além e, por entre as pedras, recolhe o que as ondas ali foram deixando. Gostava de me oferecer algumas dessas ‘riquezas’, que eu acabava por pendurar numa das vedações do jardim. Havia, porém, uma que mais me chamava a atenção. E decidi meter mãos à obra para descobrir o seu mistério!

A bóia e os The Rolling Stones!

De tudo Carlos Monteiro me entregava, susceptível de alindar esse recanto do jardim, onde, em lugar de relevo, se mostra miniatura de um dos barcos com que, na Praia de Mira, se faz a pesca de arrasto, uma actividade que eu e meus filhos deveras apreciávamos na década de 70, quando por lá passávamos férias. Chama a atenção a grande corda; mas há os diferentes tipos de bóias, cujo variado colorido não nos deixa indiferentes.

Aquela bóia, porém, é que nunca me deixou indiferente. Até porque ostentava a marca da fábrica: uma concha estilizada e um letreiro em toda a volta onde logrei ler FONDERIE LACOOULLE DANGU FRANCE. E, um destes dias, decidi que não poderia deixar sem resposta a minha curiosidade de epigrafista, onde a dúvida, por mor do estrago superficial, residia no nome da fundição.

Primeira acção, portanto: pesquisar Dangu. E o primeiro resultado foi desagradável, porque, datada de 27 de Outubro de 2020, e sob o título «As forjas de Dangu encerram, os assalariados sentem-se traídos», se noticiava:

«São hoje 31 operários especializados, mormente na confecção de peças eólicas e ferroviárias. Alguns deles só conheceram esta empresa. Patrick, Philippe e Steve aceitaram dar conta da sua incompreensão».

Tirei uma primeira conclusão: embora ligadas ao fabrico de peças que nada tinham a ver com a bóia, essas forjas perpetuavam, seguramente, uma tradição local. Contudo, acerca dessa tradição nada se dizia de significativo nas páginas da Internet. Não deixava, todavia, de se assinalar a importância do castelo de Dangu, cujos 20 quartos proporcionam – anuncia-se – excelente acomodação. Aliás, o que não vale pensar que o castelo se localiza no coração de um bosque de 60 hectares e que, tendo sido o seu envolvimento paisagístico concebido pelo famoso botânico Antoine-Nicolas Duchesne (1747-1827), nele viveram durante algum tempo os míticos The Rolling Stones!?…

A resposta que veio da Câmara Municipal

Naturalmente, eu queria saber mais. Lancei, por isso, o repto aos meus amigos franceses. Um deles, o Professor Jean-Pierre Bost, da Universidade de Bordéus, não esteve para meias medidas e escreveu directamente para a Câmara Municipal de Dangu. Pasme-se! A resposta veio quase no dia seguinte. O presidente da Câmara, Gilles Delon, fez questão em ser ele próprio a responder.

Começou por esclarecer que se tratava da fundição LA COQUILLE. Assim se corrigia a minha leitura e, claro, decifração feita, bati na cabeça, porque poderia ter logo compreendido que a concha, símbolo da fundição, me poderia ter levado de imediato a perceber que seria esse o nome da fundição: «A concha», «La Coquille».

E remeteu uma breve história do empreendimento, elaborado por Pascal Leterrible, em 20 de Agosto de 2018. Assim, a oficina metalúrgica fora construída por volta de 1836 pelo general d’Arlincourt, a partir de um moinho de trigo, que pertencera, desde os tempos feudais, aos senhores de Dangu. O 1º Conde de Lagrange havia-lhes arrendado o local por um período de 30 anos. Dificuldades burocráticas, derivadas de a prefeitura do Eure – de que a zona dependia – não ter concedido licença de laboração, motivaram a falência do empreendimento, que passou para a posse dos credores; contudo, a condessa de Lagrange logrou, em 1839, recuperá-lo.

Assim, de 1840 a 1850, a fundição conheceu um desenvolvimento notável, de tal sorte que se guindou a ser a 7ª empresa metalúrgica da Normandia. Morreu a Condessa nos finais de 1849 e os herdeiros foram autorizados, por decreto presidencial de 9 de Agosto de 1850, a manter a actividade de laminagem de zinco, cobre e outros metais.

Sabe-se que, na 2ª metade do séc. XIX, a oficina produzia, em média, 1300 toneladas de zinco laminado, nela laborando um efectivo que rondava os 45 operários. Vendida, em 1884, a uma sociedade belga, viria a especializar-se na laminagem de finas folhas de zinco. E assim terá continuado até 1956, altura em que passou a fabricar, até aos anos 80, peças de precisão para eletrodomésticos. Na actualidade, acrescentou Gilles Delon, é um anexo de moradia, mantendo-se, todavia, inalteráveis os equipamentos e as instalações hidráulicas do século XIX: a represa e o moinho; e ainda podem observar-se os diversos canais do rio Epte (afluente do Sena), que a serviam.

Em conclusão, a bóia de zinco – ou de uma liga, em que poderá entrar também o alumínio – que por aqui deu à costa vem acrescentar um dado ao que se conhece da história desta fundição: que se terá especializado também na confecção destes utilíssimos artefactos. Porventura ainda se logrará saber em que época essa produção terá sido predominante ou, pelo menos, de uma certa importância a nível europeu.

Uma bóia… para quê?

Chegados a este ponto, urgia contactar o nosso especialista em salvados, Miguel Lacerda, que dinamiza, como se sabe, a Cascaisea, organização não-governamental criada justamente para incentivar a limpeza dos oceanos:

            O Miguel acedeu prontamente a explicar-me tudo:

«Até hoje, das que consegui identificar (pois há umas de que não se consegue ler nada), umas foram fundidas em França, Dangu La Coquille (como essa e uma que tenho guardada), outras fundidas na Coruña, em Espanha, com a marca “Hercules”.

Ambas as boias eram usadas nos anos 50 e 60. São boias de fundo, ou seja, para manter o posicionamento correto dos aparelhos de pesca no fundo do mar, a base levava ferros e chumbo e a parte superior as boias.

Eram mais usadas em redes de fundo e armações, mas também há quem diga que se usavam na tralha superior dos sacos dos aparelhos de arrasto. Hoje são usadas boias em plástico PVC muito resistentes com formas semelhantes. Já as vi a serem reutilizadas como boias de amarração.

São boias que vão continuar a aparecer por muitos e muitos anos, pois existem muitos aparelhos perdidos e presos no fundo do mar… Com a ação permanente do mar e a deterioração dos materiais que as retêm no fundo (redes e cabos), estas acabam por se soltar, emergir e depois são arrastadas pelos ventos e correntes marítimas.

Tendo em conta toda a conjuntura de ventos e correntes predominantes do giro do Atlântico Norte, podem ocorrer em qualquer litoral ou ilha no Atlântico Norte».

Bem hajas, Miguel! Agora és tu quem me ensina!

E ficou tudo dito!

A não ser duas reflexões finais:

– Primeira, a lição que recebi (recebemos!) tanto de França como do Miguel Lacerda, de que há a realçar a pronta disponibilidade demonstrada por ambas as ‘fontes’ de informação;

– depois, a ideia de que mui singelo achado é susceptível de ter uma história para contar! Assim nós queiramos disponibilizarmo-nos a escutá-la!

Da minha parte, direi que olho agora com outros olhos para esta bóia que repousa no vetusto lavatório de ferro forjado que de meus antepassados herdei. E até me acontece ouvir ao longe o justíssimo clamor dos operários que outras forjas de Dangu, de um momento para o outro, lançaram no desemprego. Juntamente com outras, a minha bóia foi, um dia, lançada ao mar e soçobrou; esses operários bem queria eu que não soçobrassem jamais!

1 COMENTÁRIO

  1. Que belo texto e que belas lições dele se retiram. O autor fala da disponibilidade das pessoas, em Portugal e França, para fornecerem informação, qualidade que me parece estar ligada ao velho desejo social de contar. Depois sugere que até os achados aparentemente insignificantes (este não era) podem ter por detrás uma história maravilhosa para contar, porque nada nem ninguém é uma ilha isolada, todos fazemos parte de constelações de acontecimentos e relações tempo-espaço ricas de conteúdo. Por fim retiro eu uma terceira lição: a curiosidade e perseverança de alguém que ouse exercitá-las (no caso do autor ajudam também os seus conhecimentos) sempre trarão retorno para memória futura, além da consciência de que vivemos num mundo em que a solidariedade é urgente. Porque a interdependência também gera obrigações, sociedades inteiras podem ajudar a olhar as dificuldades de uma pequena comunidade, com problemas (aqui desemprego) repetidos em tantas mais. Muito grata pela importância deste texto, José d´Encarnação.

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