A HISTÓRIA DE UM AFRICANO

Não sabia nada sobre António Manuel, o "Negrita", cujo nome de nascimento era Nsaku N'Vunda. Mas ao ler este livro percebi o papel central dele nos encontros intercontinentais e nas rotas transatlânticas. Sacerdote e nobre do Reino do Congo, a sua travessia no início do século XVII condensa, como poucas, as tensões políticas, religiosas e imperiais de uma época atravessada por guerras espirituais, interesses europeus e mobilidade forçada. É esse mesmo universo, vasto e turbulento, que Wilfried N’Sondé recria no romance “UM OCEANO, DOIS MARES E TRÊS CONTINENTES”, que eu categorizaria como literatura de viagem.

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O livro acompanha a vida extraordinária de António Manuel Nsaku N’Vunda, um homem, padre, de origem congolesa cuja trajetória o leva do coração do Reino do Kongo – ia a escrever do coração das trevas – até grandes cidades europeias e às rotas atlânticas — daí o título que invoca o oceano Atlântico, os mares Mediterrâneo e Tirreno e os continentes Africa, América do Sul e Europa. O autor constrói um personagem que é, ao mesmo tempo, poderoso, épico, ingénuo e profundamente humano.

Embora seja ficção, o livro assenta numa investigação rigorosa e revela, para mim de uma forma magnífica, a viagem – trágica e extraordinária – do primeiro embaixador do Reino do Kongo no Vaticano, revelando tanto a dimensão humana deste homem como a brutalidade do tráfico de escravizados que dizimou povos e territórios durante séculos.

A história mistura aventura, amor e reconstrução histórica: acompanhamos o personagem em viagem, em encontros e desencontros com instituições religiosas e poderes coloniais – desejo, conflitos de fé, conversão e representação política – além das violências e contradições do mundo atlântico e não só do século XVI/XVII. O livro dá assim uma perspetiva muito particular sobre as complexas relações entre África e a Europa no início do século XVII.

A obra apresenta António Manuel Nsaku N’Vunda, bacongo nascido em Boko atraído pelo catolicismo introduzido pelos missionários e conduzido à vida religiosa até se tornar padre na sua aldeia. É então convocado pelo soberano congolês, Manicongo Mpangu-a-Nimi Lukeni lua Mvemba, conhecido como D. Álvaro II (1587–1613), descrito no romance como “Manzou a Nimi, rei dos Bakongo de ontem, hoje e amanhã, chamado também Álvaro II pelos seus irmãos cristãos desde o batismo”.

D. Álvaro II compreendia plenamente o poder geopolítico da religião no mundo num tempo dominado pela Ibéria e pela influência missionária portuguesa. Decide, por isso, enviar uma embaixada direta à Santa Sé – gesto ousado, destinado a romper a mediação lusitana e a garantir ao Reino do Congo, para além de outros privilégios, o direito de nomear os seus próprios bispos, tal como os monarcas europeus. A escolha recai sobre o seu primo, Nsaku N’vunda, homem de fé sólida, carácter firme e domínio do português. Historicamente parece que a comitiva tinha cerca de 25 pessoas, das quais poucas, muito poucas mesmo, chegaram ao Vaticano. No romance é uma viagem solitária na companhia de marinheiros, escravos e piratas.

A documentação histórica confirma a dimensão épica da viagem feita. O percurso de Nsaku N’Vunda pode, como sugere o romance, dividir-se em duas grandes etapas: do Congo ao Novo Mundo e do Novo Mundo à Europa. A primeira etapa revela o ambiente violento do Atlântico, nomeadamente a vida no interior de um navio negreiro; a segunda, para além de relatar ataques de piratas e a fuga numa embarcação mais pequena, expõe o intrincado labirinto de interesses políticos de Portugal e Espanha. Com longas paragens no Brasil, em Portugal e em Espanha, a viagem acaba por demorar três longos anos.

O livro não fala disso, mas ele passou pelo Funchal, Lisboa, Alcobaça – onde viveu algum tempo no mosteiro – e também por Évora, a caminho de Madrid. Quando alcança Roma, carrega no corpo o desgaste da grande odisseia física e espiritual que protagonizou. Gravemente doente, é visitado pelo Papa Paulo V, que vai ao seu leito para receber a mensagem do Reino do Congo – gesto que demonstra o interesse da Santa Sé em um diálogo direto com o reino africano e a vontade de expandir a fé para além das fronteiras ditadas pelas coroas europeias, nomeadamente portuguesa e espanhola.

fresco da visita papal a Nsaku N’Vunda, em Roma

Nsaku N’Vunda morre a 6 de janeiro de 1608, mas recebe honras extraordinárias: é sepultado na Basílica de Santa Maria Maior, onde o seu túmulo, ainda hoje visitável, o designa como “Dom António Manuel, Príncipe do Kongo”. A história consagra-o como o primeiro embaixador africano na Santa Sé e antecede mesmo a Embaixada Keichō (1613–1620) do Japão. Hoje, a sua memória é celebrada em África, no Vaticano e em diversas instituições académicas. E, tal como o romance de N’Sondé sugere, revisitar a sua história é revisitar também a história de milhões cujas vidas foram moldadas – quando não roubadas – pelo Atlântico como espaço de circulação, de confronto, de dor e de resistência.

busto de Nsaku N’Vunda

Para além da biografia romanceada deste homem extraordinário, António Manuel Nsaku N’Vunda, este livro, que recomendo vivamente, fala-nos, e de que maneira,do colonialismo, da religião e do poder, da escravatura, da condição da mulher, europeia e africana no séc. XVI e XVII, do capitalismo desenfreado que mercantilizou os seres humanos, da identidade, da corrupção e do racismo.

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