Reparaste em mim. Fico feliz. Viste as minhas florinhas? Sabes, ninguém repara nelas e a mim custa-me! Ah e a mim cortam-me! Nunca me deixam crescer. É raro eu conseguir mostrar a beleza das minhas corolas. Qualquer gretazinha em muro ou no chão me serve para eu me aninhar e viver. Vivo de pouco e cá vou ficando, enquanto me deixam. A ver as pessoas que passam. Tenho sempre um medo terrível que me pisem.
Vejo o teu cão, vejo os pardais e as rolas e os melros a beberem e, por vezes, a tomarem banho na pia que lhes destinaste. É a vida à minha volta. Eu gosto. Depois, aqui escondida na dobra deste degrau, sinto quantos entram e saem da tua casa. Apressados, uns; mas, de um modo geral, tranquilos, sem correria. Oiço o trinco do portão a avisar-me: «Vem gente!». Eu fico curiosa: «Quem será?».


Fotografaste-me com a sábia aplicação identificativa de plantas e, já percebi, ficaste a saber tudo sobre mim. Até deste um pulo – bem eu vi! – quando, arqueólogo como és, te apercebeste do meu nome: ruínas! E a seguir vem informação sobre o cientista que, pela primeira vez, me identificou: o botânico alemão Philipp Gaertner (1754-1825). Chamou-me cientificamente, em língua latina (fiquei toda babada): Cymbalaria muralis! Já viste? Nome bonito. Muralis, porque o meu reino é o dos muros, como tu, que gostas de encontrar as estruturas arqueológicas. E cymbalaria é giro, não é? Nada tem a ver com o cimbalino do pessoal do Porto, nome de bica por lá, devido à máquina La Cimbali que o prepara. Mas, se calhar, até tenho algo a ver com isso, porque… Olha lá o que diz o dicionário acerca de cymbalum, o címbalo: «Instrumento musical constituído por dois pratos ocos, de metal, que soam quando batem um no outro». Eu acho que não emito som nenhum. Mas gostava. Já viste o que era eu a saudar melodiosamente quem pisasse o degrau e viesse visitar-te? Já agora, diz-me lá o que mais dizem sobre as minhas características.

Está bem, faço-te a vontade, embora esta linguagem dos botânicos seja um tudo -nada hermética: «Erva vivaz, de glabra a pilosa, de caule até 60 cm». Puxa! Cresces bastante! Bem vejo as tuas amigas ali adiante a ganharem cada vez mais espaço, como quem se espreguiça na praia… Olha, diz aqui que as tuas flores parecem um rosto, de palato amarelo! É verdade: lembram-me as flores das orquídeas em miniatura muito miniatura. Vou mostrar aos meus amigos.

Bem hajas! Fico mesmo muito contente por teres conversado comigo. No fundo, sabes, é bem triste a vida de uma… ruínas! Acontece-lhe com muita frequência o que às outras ruínas, as das casas, sabes, acontece: deixam-nos arruinar-se ainda mais e lá vem o dia em que tudo arrasam, sem sequer fazerem o desenho do que restava. Hoje, porém, deste-me uma alegria… Obrigado!… Espera aí, não te vais embora ainda, porque tenho mais um segredo para te contar: é que eu pertenço à família das escrofulariáceas! Sabes porquê? Porque, outrora, os antigos, que percebiam dessas mèzinhas, usavam-nos para tratar das escrófulas, aquelas inflamações ulcerosas que tanto molestavam as pessoas, davam uma comichão danada e mau aspecto. Ora aí tens mais uma novidade para contar. Vês como, afinal, mesmo assim pequenina até eu servi para alguma coisa?!…
De: Editorial Blau
3 de agosto de 2025 10:55
Olá Bom dia
Gostei imenso destas duas linhas… e de outras anteriores também, mas destas especialmente
Boa tarde José d’Encarnação
Muitas pessoas poderiam queixar-se, como a planta. Tantas que existem no mesmo lugar durante anos, todos os dias em constante labor para cuidarem de si e de mais alguém, e ninguém lhes dá o menor valor.
Isto do valor também depende de vagas. Se uma onda vai muito num sentido, há mais quem a fortaleça para reforçar…caso contrário apaga-se a luz e esmorece o vigor do movimento.
Este texto é muito belo, quase metáfora para preocupações existenciais. E no final ainda tem uma mensagem implícita para quem estiver atento: até as planta, pessoa, objecto mais insignificantes, podem ter uma função da maior importância, neste caso curativa.
Aliás, reparar em primeira instância, enaltecer a seguir, distinguir as qualidades, talvez servissem sempre para curar e quiçá a humanidade não estivesse tão doente.
Tens razâo: até uma pequena flor gosta de uma palavra, de um sorriso. Estas têm a aparência de um rosto, mas há rostos e corpos que já foram belos e se vão convertendo em ruínas pela distracção continuada e intencional.
Muito grata por nos fazeres reflectir através das palavras deste texto singular.
Um abraço.
Tens o condão de envolver uma crónica numa auréola filosófica e humanista deveras excepcional, conferindo-lhe a exímia categoria de parábola, com lição final. Encantas-me.
Ricardo António Alves
3 de agosto de 2025 13:29
Querido Amigo,
Não é, de todo, conversa fiada!
Gostei muito.
Abraço!
De: dulce helena borges
7 de agosto de 2025 10:00
Bom dia poeta!!!
Obrigada por este saboroso diálogo!!
Saúde.
Beijinhos