O CHEIRO, A VELHICE E O QUOTIDIANO

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aguarela de Kaihan Hamidi

– É linda, a rosa vermelha que me deste! E tem um cheiro!…

Liga-se o cheiro ao perfume das flores. O jasmim florido, por exemplo, mesmo num canto perfuma toda uma praceta.

Dá-me impressão que, ao lembrar-me, me delicia ainda, mais de sete décadas passadas, aquele oloroso botão de rosa príncipe negro que a Angelina me ofereceu. Nunca mais tive outro igual.

O Spike não resiste: no passeio, cheira todas as viaturas da praceta e demora-se, demora-se numa ali estacionada pela primeira vez; as demais limita-se a reconhecê-las. Grande, o poder do faro dos cães.

Ausentes os donos, o Maio aninha-se junto à almofada da dona ou, se eu deixar  o roupão sobre a cama, certo e sabido: vou encontrá-lo deitado nele, no regresso.

Cedo descobre o bebé o cheiro da mãe.

Queira-se, ou não, cada um de nós exala um odor próprio; queremo-lo o mais agradável possível e sentimo-nos confortáveis se cuidámos bem das axilas, se não há mau hálito por perto. Acontece associarmos um cheiro a determinado acontecimento marcante das nossas vidas ou a alguém com quem, um dia, nos cruzámos e deixou rasto.

Incomoda-nos se o empregado de mesa se não preocupou com esse aspecto do seu necessário pundonor.

Fugimos dos maus cheiros, protestamos. Na A2, tentamos não respirar ao passarmos por aquela fábrica transformadora de bagaço.

Em Modena, inventaram o vinagre balsâmico e a salada com ele até sabe melhor. Apetece aspirar a longos haustos, pela manhã, o ar ainda húmido a desprender-se do restolho duma seara recém-ceifada. «Perfume de mulher» leva-nos àquele memorável tango superiormente dançado por Al Pacino ou à canção celebrizada por Ágata – o relevante papel do cheiro nas relações amorosas!…

O Sorriso das Estrelas

Há muito que tinha a ideia de escrever sobre o cheiro. Não propriamente sobre o sentido do olfacto, mas dos cheiros que sentimos. Decidi-me agora, depois de ter devorado (é o termo!) o romance Nights in Rodanthe (2002), de Nicholas Sparks, a que se deu, em português, mais sugestivo título: O Sorriso das Estrelas, na tradução, quase sem mácula, de Saul Barata, para a Presença. Li a 32ª edição (Lisboa, Dezembro de 2008). Uma história ímpar, como o são as deste autor, que prende do princípio ao fim. Sparks nasceu a 31-12-1965, no estado do Alabama; esteve 25 anos casado com Cathy, de quem teve 5 filhos.

O que, no livro, me surpreendeu nesse âmbito do cheiro foi o seguinte parágrafo que, em relação aos humanos, ainda não vira assim consciencializado:

«Contudo, o cheiro ainda se mantinha. O cheiro do pequeno-almoço que haviam tomado juntos, o cheiro da loção que ele usava, o cheiro dele que lhe impregnava as mãos, o rosto, a roupa» (p. 135).

Há, no entanto, outras passagens dignas de partilha. Sobre a velhice, sobre o quotidiano.

– «Ao sair da cama mal consigo mexer-me. Coxeio como um velho. Tenho de pagar o preço de todas as corridas que tenho feito, durante muitos anos» (p. 111).

– Adrienne «tinha uma teoria de acordo com a qual se começasse a tomar comprimidos para uma dada doença, não tardariam a aparecer todos aqueles achaques  que eram o tormento das pessoas da sua idade. A esse, não tardariam a seguir-se outros comprimidos, com todas as cores do arco-íris, uns para tomar de manhã, outros à noite, uns com a comida e outros em jejum, a exigirem um mapa colocado na porta do armário dos remédios para evitar confusões. Era trabalho mal empregado» (p. 136).

– «Com o passar dos anos, observar pessoas tornara-se um divertimento. Ao ver os leitores sentados em silêncio naquelas salas, não conseguia deixar de imaginar como seriam as suas vidas. Dava consigo a magicar se determinada pessoas era casada ou o que fazia para ganhar a vida […]» (p. 139).

– Via também o exercício físico «como uma forma de meditação, como uma das poucas ocasiões em que podia estar só» (p. 84).

– «Muitas pessoas pensam que o silêncio é um vazio que tem de ser preenchido, mesmo que não tenham nada de importante para dizer» (p. 77).

– «Tive um período na minha vida em que tinha por hábito trabalhar demasiado» (p. 61).

E não é que, de facto, mera leitura de um romance também pode ser amena colheita de sentenças para a vida?!…

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