TERRAS DO DEMO, A TERRA E A GENTE

Houve um tempo em que os velhos fotógrafos “à la minute” deambulavam por feiras e aldeias da Beira cumprindo sua sina. Pousavam a câmara no Adro, sobre o tripé, levantavam contra o muro uma tela com artificioso cenário e esperavam a vinda de noivos ainda fresquinhos, de casal com os filhos no Brasil, de criança com vestido de anjinho ou primeira comunhão. Mostravam-lhes depois o retrato impresso a preto e branco num rectângulo de papel. Sorria-se a criança, coravam os noivos, o casal ficava embaraçado. Eram eles próprios sem tirar nem pôr. Reconheciam-se no retrato!...

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O autor das Terras do Demo não precisou da mágica caixa do fotógrafo para olhar. Antes quis ver através dos seus olhos. E não lhe foi preciso montar cenário. Que ao longe, desenhando um mágico cenário, ficavam as aldeias montesinhas que moram nos picotos da Beira, olham a Estrela, o Caramulo, a cernelha do Douro e, a norte, lhes parece gamela emborcada o monte Marão.

Esta a inultrapassável descrição da terra, dessa terra que nós hoje chamamos Terras do Demo. E a gente que habita essa terra descreve-no-la Aquilino através da sublime metáfora da “pedra de lameira” que, ao levantar-se, deixa ver aos nossos olhos toda uma fauna prodigiosamente multicor, alvoroçada com o desmancho da sua casa de par com a luz do dia. Homens e mulheres travestidos de bichos de cujas caraterísticas faz préstimo para recompor o carácter daqueles. E quando o Mestre descreve a aldeia serrana, a que lhe serviu de berço, idêntica a todas as outras, e a nomeia de barulhenta, valerosa, suja, sensual, avara, honrada, com todos os sentimentos e instintos que constituíam o empedrado da comuna antiga, mais não faz do que caracterizar a psicologia do serrano que nela é morador desde o longínquo tempo das orcas ou do mais vizinho tempo do Rei Vamba. E eles, os serranos, reconhecem-se no retrato.

Aquilino não demarcou uma linha de fronteira a esse território que apelidou “Terras do Demo”, essa espécie de pátria perdida no tempo, onde nunca Cristo ali rompeu as sandálias, passou el-rei a caçar, ou os apóstolos da Igualdade em propaganda. Bárbaras e agrestes, mercê apenas do seu individualismo se têm mantido, sem perdas nem danos, à margem da civilização.

Da aldeia do seu tempo Aquilino desvela-nos o casario enovelado à volta da igreja, deixando a deslado o cemitério, esse outro lugar santo, demarca o lugar da fonte de chafurdo e da ribeira, o forno, a taberna, a sala de aula na casa da professora. Leva-nos depois à orla da aldeia para nos mostrar os agros, primeiro os hortejos onde se colhe a couve das berças, o nabo, a réstia de cebolas ou dos alhos, mais longe os magros campos de centeal, ainda além os maninhos da serra onde pastam os gados, se colhe a lenha da lareira e se rouba o “cepo” de um castanheiro antigo para a fogueira da Noite Boa. Deixa depois ver ao longe os mais longos caminhos, cruzes de homem morto aqui e além e piedosas Alminhas pontuando caminhos de feira, de romaria, caminhos de Malhadinhas, caminhos de oveiras e doceiras, ínvios caminhos para as mulheres que subiam do vale com as cestas cheias de laranjas no mês de Abril. Tardava ainda a estrada e o passar da camioneta.

De tempos-a-tempos Aquilino desce ao vale. Já vinha com o pai em criança, era Amadeu, o seu alter-ego, vinham ao Amparo, a fidalga quinta do padrinho. Rapaz feito, Libório Barradas de nome inventado, desce a Santa Maria das Águias, à recatada quinta dos fidalgos Malafaias, não longe do rio Távora, já descendo para o Douro. Percorre as cercas desertas e as arruinadas moradas dos Frades de São Francisco, das Recolhidas de Freixinho e das pobres monjas do Mosteiro de Nossa Senhora da Assunção, na Tabosa. Mas ali, entre o Norte e o Nascente, terras fundas, de boas águas, de fáceis lavras, já crescia a vinha, vicejavam fruteiras, eram largos e transitáveis os caminhos. Dir-se-ia que ali era chão de paraíso.

De Sul a Poente ficava Barrelas com o arvoredo da feira, o Malhadinhas que ali se finou já velhinho, o rio Paiva com os campos regados, os poços truteiros, os moinhos e pisões. E subindo a deslado, para as bandas do Baixo Douro, as largas e místicas tapadas de Adomingueiros onde a gente do Touro cultivava o pão e apascentava as vacas.

“Terras do Alto Paiva” lhes chamou Fonseca da Gama, como se este fosse outro condado. E é ele quem lhes desenha em livro o retrato que Aquilino, companheiro de caça e amigo, lhe autentica com autorizado prefácio.

Retornando ao cerne das aldeias montesinhas, a serra-madre alargava-se, estendida entre o Norte e o Poente. Por alguns caminhos Aquilino ainda fez travessia. Serra de Leomil, ou Nave, tanto faz. Dela escrevia já António de Sèves, romântico e poeta, quando as Terras do Demo se geravam ainda na pena de Aquilino. Gertrudes da Silva, num tempo já moderno, reconstrói, ao jeito de emocional memória cativa da aldeia onde nasceu, Alvite, uma metonímica imagem de toda a serra. E Jaime Gouveia, erudito perscrutador da história da sua terra, Leomil, deixará nas densas páginas da sua obra toda a força do magma de que é feita a serra que gosta de chamar serra de Leomil.

A propósito das suas Terras do Demo Aquilino Ribeiro escreverá, um dia, talvez com manifesto orgulho, que o melhor galardão que o meu livro teve foi que desse o nome à corda de povos romanceados. Não só para as demais terras do Distrito, mas para as de longe, aqueles lugares, incrustados na serra da Nave, passaram a ser as terras do Demo.

Terras do Demo, alargado hoje o velho conceito da imprecisa demarcação geográfica que as reduzia aos alcantis da Beira, verdadeiramente às elevadas planuras da Lapa e da Nave, a essa agora abrangente geografia contida pela mais alargada linha de fronteira político-administrativa dos três municípios, Moimenta da Beira, Sernancelhe e Vila Nova de Paiva.

E este será o tempo novo sonhado por Aquilino. Ganho o direito da cidadania plena, a serra tanto quanto o vale, lá onde o pão e o vinho, a matricial díade do sustento, se iguala ao do chão dessa pátria maior a que ganharam direito de idêntica pertença.

O casario da aldeia já não se enrosca, inteiro, à volta da matriz, não há luz de candeia, desapareceram os centeais das courelas, os folharecos de couve das hortas marginais, as leituras ao serão pela cartilha. Crescem, agora, nas encostas, os vinhedos; florescem, em Abril, os pomares de macieiras; no Outono, mantêm-se como andores de festa os castanheiros, no remanso dos vales o sol aquece as oliveiras, o gado ganhou novo redil, os rochedos que abrigavam as mourinhas valem ouro. A festa continua na Páscoa, no Natal e no dia do orago da freguesia. Continua, alegre, a romaria. E inventam-se outras festas: das Sopas, da Castanha, da Maçã, das Trutas, do Fumeiro. E celebra-se a alegria enchendo taças com espumante “Terras do Demo”. Mesmo que tanta promessa ainda haja para cumprir. Nas Terras do Demo!…

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