VIAJAR ATÉ GUILDFORD

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– Vais para Lisboa?
Não. Eu não ia para Lisboa, mas para uma vila dos arredores. Para os meus companheiros de Coimbra, era tudo a grande Lisboa.

Tive agora a mesma sensação quando me perguntaram:
— Vais para Londres?

E eu respondi que sim, porque iria aterrar no aeroporto de Gatwick. Porém, não fui alojar-me em Londres. O meu destino era Guildford, uma cidade dos arredores londrinos, digamos assim, de que eu jamais ouvira falar, situada bem a ocidente da capital inglesa.

Depois do almoço no Positano, ementa italiana a preceito, regada por um tinto Montepulciano d’Abruzzo, senti-me numa verdadeira cidade inglesa. Nada do cosmopolitismo londrino, raças e trajes exóticos não se viam. Tudo era do mais puro estilo inglês: nas vestes e no falar. O casario, os monumentos  tudo respirava tradição. Por um túnel sob os prédios, desci à margem do rio Wey, afluente do Tamisa. Uma barca descia as águas turvas, nada inspiradoras de um mergulho. A escultura de um homem de outro tempo, que lançava amarras, invocava épocas em que dali partia a mercancia até à grande capital.

Na rua principal, a High Street, muito movimentada, um pregoeiro procurava vender jornais para a associação que cuidava dos sem-abrigo. Outro pedia uma esmola para soldados desprovidos de meios financeiros, que sofriam de PTSD — Perturbação de Stress Pós-Traumático.

Tudo estava bem conservado. Aquela antiga casa, com o grande letreiro num edifício histórico, já não permite, a partir do nível da rua, ler por completo a inscrição que ostenta. Mas não será muito diferente de outras onde se consegue ler: “VITA IN MOTV EST” — a vida está em movimento

À entrada doutro edifício nobre a placa informava que estávamos diante do Abbot’s hospital. Georges Abbot, natural de Guildford, fora arcebispo de Cantuária e fundara esta estalagem em 1619. Há cerca de 400 anos foi transformada em alojamento para maiores de 60 anos com poucos recursos.

A igreja anglicana da Santíssima Trindade tem mais de mil anos, pois começou no século XI. Possui no seu interior uma capela medieval, construída em tijolos vermelhos, no chamado estilo Early Georgian, que tem telhado curiosamente desprovido de suportes internos. Reza a promoção turística que é conhecida pelos seus  ‘deslumbrantes vitrais e pela atmosfera tranquila, que proporciona aos visitantes uma fuga serena da agitada vida quotidiana’ Estava fechada quando por ela passei, mas acredito piedosamente que assim seja. Sucessivas foram os restauros até à actualidade. Atrás, semi-abandonado, ficava o cemitério; se tinham letras, as placas verticais já as perderam; poderiam começar por “Consagrado à memória de…”.

Algo que também pode causar estranheza é a forma como são aproveitados para passagem de uma rua para as outras os muito estreitos espaços entre prédios. Ninguém diria. As pessoas usam essas vielas com a maior descontração.

Não estranhei, porém, quando, a meio de uma compra numa das lojas, a funcionária, ao verificar que as freguesas eram portuguesas, passou a atendê-las em português. Ela também era portuguesa!… Foi, pois, o grande final de uma jornada singular.

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