GUARDAR A MEMÓRIA

Ou desfazer a vida?

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Chegamos, um dia, à idade em que olhamos para trás e, como escreveu o imortal António Machado, verificamos que «son tus huellas el camino». Sim, foste tu, afinal, que traçaste o teu caminho e, esse, o teu, as tuas pegadas não existiam antes.

E damo-nos conta de que, ao longo dessa jornada, muitas coisas alijámos – qual náufrago em aflição, para não se afundar – e muitas outras fomos guardando, por exemplo, «para arrumar quando estiver reformado»!… Depois, chega a reforma e, de um modo geral, é bem possível que o ritmo continue (as necessidades obrigam!…), mais pegadas haja e o tempo acabe por faltar!…

Há, porém, um dia, uma semana, um mês, em que, em jeito de bater com a cabeça na parede, decidimos mesmo parar.

Isso escreveu João Lourenço Roque, em Digressões Interiores 3 (Palimage, Coimbra, 2021,p. 224:

«Deu-me, durante dias a fio, para ‘arrumar’ a casa e a vida tão escuras e desarrumadas, remexendo estantes e gavetas, eliminando objectos, histórias, segredos e papeladas que deixaram de fazer sentido. Até cartas de amor, que mal me lembrava que existiam. Só guardei, não imagino até quando, algumas fotografias ou desenhos infantis que não tive coragem de queimar. Algumas coisas encaminhei-as para a Caritas, através da Junta de Freguesia. ‘Despedi-me’ da cadeirinha da Sara, nas viagens de carro com o Pai, como quem se despede da maior relíquia ou preciosidade. Ao rasgar tudo aquilo que rasguei, mais senti ter rasgado capítulos inteiros da minha vida». Assim é.

 Na 4ª carta, de D. José Policarpo, cardeal-patriarca de Lisboa, a Eduardo Prado Coelho, no Diário de Notícias (2003), no âmbito da série «Diálogos sobre a Fé», lê-se, a dado passo:

«Muitos de nós fizemos já a experiência de tentar arrumar os sótãos das velhas casas de família, onde as memórias se acumulam, significando que alguém se recusou a deitá-las fora. Um dia meti-me nisso, a arrumar o sótão da nossa casa de família».

Aconteceu-lhe, porém, que boa parte do que classificara como «lixo», vieram os sobrinhos e os irmãos e acharam que eram «tesouros de família».

Difíceis opções essas, as da escolha do que vai e do que fica. Difíceis, ainda mais, as possibilidades de destino: as bibliotecas estão cheias (os seus arquitectos esqueceram-se de prever espaço); as roupas, os objectos… inutilidades serão?

E as fotografias? Esquecemo-nos de pôr nas costas datas e nomes, na convicção de que nossa memória seria eternamente tenaz. Não é. Tudo se esvaiu no tempo. Nomes e lugares, até. E quase cedemos à tentação de tudo queimar – como o Lourenço Roque. Felizmente que, todavia, há cada vez mais responsáveis pelos arquivos municipais que têm plena consciência do manancial histórico que mesmo as fotos antigas de família constituem e não se recusam a guardá-las. Os trajes, as tradições, os ambientes, os hábitos… tudo isso uma fotografia pode documentar!

Não é, de facto, ainda hoje sem um estremecimento que recordo o que amiga minha me contou: vizinha do Michel Giacometti, no centro de Cascais, deu de caras, uma manhã, com uma quantidade de documentação na rua, pronta a ir para o lixo. Giacometti morrera e a casa estava a ser esvaziada. Não hesitou – e o acervo do etnólogo está hoje no Museu da Música Tradicional Portuguesa. Escapou por um triz!

Sinto que devia exarar uma conclusão meio lamechas, num apelo a quantos nestas ‘coisas’ podem ter intervenção. Hesito. Acho que fico por aqui – cada um saberá tirar a conclusão melhor!

10 COMENTÁRIOS

  1. De Jorge Forjaz:
    Só para te dizer que adorei o teu texto do guardião da memória. Aqui por casa, com grande sótão, não imaginas o que para lá está – ou estava. Pois nos últimos dez anos tenho feito sucessivas doações ao arquivo cá da terra. o primeiro foi o arquivo de meu pai – cerca de 15000 documentos, imagina, que enviei em 60 caixas, todos arrumados em capilhas e com indicação dos autores; anos mais tarde foi o arquivo dos meus avós maternos, gente do comércio, outros milhares; mais tarde ainda o de um tio-bisavô que foi presidente do Directório Republicano nos últimos anos da Monarquia. E com isto foram álbuns de fotografias, onde toda a vida escrevi atrás quem são as pessoas – até numa fotografia minha escrevo o meu nome!!
    Enfim, ninguém mais do que eu apoia o teu apelo – o que por aí se tem perdido? O que se perdeu no sismo de 1980 em Angra? Tudo papelada velha, dizem os carrascos!!
    E quanto ao Giacometti – aqui vai outra história: depois do sismo de 80, fechou o Teatro Angrense, obra de finais do séc. XIX. No escritório tinha documentação, fotos, cartazes, de filmes, teatro, enfim, tudo o que lá se passou. Ia um amigo meu a passar na frente e viu caixas e caixas de papéis à espera do carro do lixo. Era a memória do Teatro! Como esse meu amigo também era do grupo dos que concordam contigo, levou tudo para casa, e hoje está tudo a salvo. Às vezes há a Santa Providência.

    Obrigado, caro amigo, pelo teu bom combate!

  2. O testemunho de um octogenário, meu Amigo:
    «Gostei muito de ler o seu texto Guardar a memória.
    Também eu já me desfiz de muita coisa. De apontamentos que fui reunindo para eventuais futuros artigos e que agora deitei ao lixo porque já não escreverei tais artigos. […]
    Quando, há uns anos, mudei de casa, também me desfiz de livros e de papelada que dei ao Centro de Documentação 25 de Abril. E de alguns livros sobre música que dei à Faculdade.
    Também deitei ao lixo muitas fotografias.
    Fica por aqui o registo (incompleto) da lixeira e das doações.
    O Padre António Vieira escreveu que devíamos deixar de viver antes de morrer. Queria dizer que, antes de morrermos, devíamos abandonar projectos, sonhos, actividades que haviam sido nossos durante uma vida inteira, mas que agora, atingida a velhice, já não faziam sentido.»

  3. De: João Gouveia Monteiro
    Enviada: 26 de novembro de 2023 11:21

    Ah, bela crónica, até me arrepiei ao ler. Pelas palavras do nosso amigo JLR; e pela história do espólio quase perdido do grande Giacometti, que não conheci pessoalmente, mas é como se o tivesse conhecido (acompanhei de perto o arranque da Brigada Victor Jara, que se inspirou muitíssimo nele, pois a Né Ladeiras era minha cunhada e o Seabra Santos o maior amigo do meu irmão Jorge). Abraço de parabéns e muito obrigado.

  4. De: Vasco Gil Mantas
    Enviada: 26 de novembro de 2023 11:21
    Caro José
    Muito obrigado por este texto. Mas isto é o Portugal real (não no sentido monárquico, claro!). Felizmente no meio da incultura e do desprezo absoluto pelo que não é rentável surgem pessoas que representam o que de melhor ainda subsiste entre nós, herdeiros do Portugal Velho.

  5. De: Conceição Correia
    Enviada: 27 de novembro de 2023 16:27
    Caro Professor,
    Muito obrigada por nos enviar este texto.
    Vou contar-lhe uma história.
    Quando o espólio do compositor Fernando Lopes-Graça veio para o museu, o João Cabral disse-me o seguinte:
    Não deites nada fora. Hoje pode parecer não fazer sentido, mas à medida que forem trabalhando o acervo encontrarão a razão de ser de um prato, de uma caixa, uma fotografia, etc.
    E é bem verdade. Nós guardamos para nos lembrarmos!…

    NOTA: A Dra. Conceição Correia é responsável pelo Museu da Música Portuguesa, onde se encontram os espólios de Michel Giacometti e Fernando Lopes-Graça.

  6. A memória é uma ingrata que nos dá o confrangimento da nossa humanidade e esta se longa, olhada de traz ,é bem curta ao olhar-se de frente..O hoje é mais um passo á nova Vida depois de fecharmos os olhos…As ondas da memória assaltam o esporão do mar que é a nossa alma e qual relâmpago acende a luz dum passado momento. Se pomos no papel ,para que fique na lembrança,o inexorável tempo irá dar a surpresa a alguém de um dia ,no limpar os nossos sótãos ,de abrir a recordação do que já foi e do que nunca será. Bem haja o carinho de quem é curioso e que quer partilhar o seu pensar que é o essencial da vida de cada um . Sei quem sou e o caminho que percorri e tal como tu ou ‘ tus’ irei deixar uma lixeira de recordações as quais serão encontradas ou deitadas ao lixo conforme as sortes ou azares que nos são votados por vontades longínquas e ainda desconhecidas. É tão bom saber que o Zé d’Encarnacao que lá longe entrou na aula dos Salesianos com o seu irmão e se sentou na carteira ao meu lado partilha do assim parte da minha juventude,depois de tantos anos de ausência a encontrar-se comigo aqui nas teclas e ecrã dum telemóvel numa outra noite de insónia. Aqui vai a minha saudação e o meu obrigado por existires e teres dado a todos o dom do teu saber. Talvez sejas tu quem ainda um dia irá ler os poemas que escrevi e guardo por aqui e ali e passes o meu legado á consciência dos que desejam sempre ser melhores Homens. Não me despeço mas envio-te o meu abraço porque sempre gostei de ti como amigo que sabes ser de todos. Bem hajas José d’Encarnacão.

  7. Meu caro Manuel
    Que privilégio o meu receber agora, tantos anos passados, este teu contacto, com palavras tão amáveis (refiro-me à segunda parte) e sábias (refiro-me à primeira).
    Quanto à segunda, direi que sou fruto da educação que recebi, tanto da minha professora primária como dos Salesianos. Esse ‘espírito’, inoculado na juventude, procurei eu que se não perdesse e desse frutos, na assunção de todas as nossas responsabilidades como cidadãos a quem, como escreveu um clássico e como é, de resto, o lema duma das universidades em que fui docente, a Lusófona, «nihil humani alienum est». Aceita um forte abraço e quanto aos versos, Amigo, vamos a isso! Bom ano!

  8. Gostei muito de ler este texto que jurava já ter comentado.
    Todos os excertos são emotivos, todas as palavras do autor são de um Poeta que escolheu e enriqueceu outros caminhos.
    A última parte, uma síntese das anteriores em remate brilhante, diz-me muito. As fotografias antigas, de avós e de trisavós…a tristeza de algumas se terem “perdido” intencionalmente…
    Pedi apenas uma a quem herdara o espólio da família. A fotografia dos nossos trisavós, artigos escritos nos jornais de Coimbra por um filho deles (dizia-se na família que era o nosso bisavô que os escrevia para o irmão publicar) e uns papéis que referiam a velha casa no Largo do Romal.
    Foi tudo parar ao lixo…
    Não era um espólio importante a não ser para mim e tinha o direito de o receber como herança, mesmo com o pó dos anos.
    Veio este texto lembrar-me duas coisas: a necessidade de limpar para não deixar essa tarefa a ninguém; o respeito que devemos ter pelas pessoas que ainda sabem o que tem valor cultural para ajudar a enriquecer a memória colectiva.
    Louvo essa senhora que salvou o trabalho de Michel Giacometti.
    Um abraço.

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