Antes ainda da invenção dos cereais como fornecedores do pão, o pão quotidiano de que em nenhum dia prescindimos, esse matricial alimento dos homens pelos séculos fora, a castanha, que alguém já designou de “fruta-pão”, cumpriu esse singular requisito de dar-se em alimento através de uma lonjura de anos de cuja memória já nos desprendemos.
Quem, agora, habita a cidade ou mesmo quem reside na largueza das freguesias rurais do município viseense, não tem ideia do que seja um souto, não guarda qualquer impressiva memória de um velho castanheiro centenar como esses que, mais longe, ainda resistem nas ventosas encostas da Beira e que na sua solene mansidão e humilde postura nos espantam.
Todavia, os castanheiros cobriram o chão de Viseu, a margem da cidade e os alargados termos. Disso nos dá notícia o Foral de Viseu de 1514 que refere a presença das castanhas verdes e secas como susceptíveis de portagem. Da abundância de castanha dá franco testemunho o bem informado cronista Manuel Botelho Ribeiro Pereira nos Diálogos Morais e Políticos. que escreveu entre 1630 e 1636 e nos deixou. E os curas que, em 1758, obedientes ao seu bispo e ao rei, responderam ao Inquérito que o ministro deste lhes enviou, as agora ditas Memórias Paroquiais, registaram a castanha como um dos dominantes produtos da terra.
Cavernães, Cota, Lordosa, com bastante castanha, diz o pároco, Mundão, Silgueiros, Torredeita, com muita castanha, e o Padre Manuel Lopes de Almeida, um dos quatro curas da cidade afirma, assertivo, que tem este lugar muitos e grandes soutos, referindo-se ao território onde exercia o seu múnus e que se estendia das margens do Pavia até ao Monte de Santa Luzia, o velho castro habitado nos longínquos idos do “Bronze”.
Almeida e Silva, falecido em 1945, evoca a última vergôntea do assombroso Castanheiro dos Amores, que lhe terá servido de inspiração para pintar, agora na escrita e não com tintas, o trágico desfecho dos amores de Branca e de Fernão, um dos enamorados de Aljubarrota que da batalha prometera regressar e só o pôde fazer como dorido fantasma.
Nesse tempo, as castanhas eram substancial alimento que se acrescentava com os produtos das hortas, os cereais de pão, particularmente o milho, tardiamente chegado, as batatas só no tarde afectadas à cozinha, impostas à medida que as doenças e a cobiça dos homens faziam desaparecer os castanheiros.
As castanhas saboreavam-se frescas, cozidas, assadas, feitas pão, as falachas que eram cozidas na quentura do lar.
Secavam-se às rasas nos caniços de miúdo varedo da ampla cozinha dos lavradores e as castanhas secas, piladas, como se dizia, retirada a casca com a sábia maceração dos tamancos, eram moeda para pagamento de rendas a senhorios laicos e de dízimas aos mosteiros, eram mercadoria transacionada em mercados e feiras, saíam em cargas a fronteira do concelho, eram alimento de trabalhadores pelo verão fora. E eram caldo ritual no Domingo de Ramos, já uma vez contámos.
De tempo mais recente guardamos a doce memória dos pregões dos velhos assadores de castanha na Rua Direita, agora com novo pouso. Guardamos memória da convivialidade festiva dos “magustos”.
Hoje temo-las, as castanhas, no quotidiano, à nossa mesa, jeitos de cozinha “gourmet”, nos doces e saborosos caldos, como antigamente se dizia ou dando sabor e claro encanto a todo o género de “pratos” que nos servem, da carne ao peixe, aos enchidos, às sobremesas, que as transfiguram guardando-lhes o toque, essa memória que, demorada, permanece, esse gostoso paladar.



