Gabriel Pereira (1847-1911), notável homem de cultura do seu tempo e de todos os tempos pelos testemunhos que nos legou, foi chamado, um dia, a avaliar o recheio de uma casa. O que viu e como o viu fez com que ele sentisse a obrigação de o partilhar por escrito. Li essa partilha e não a quero, pois, só para mim. Vou contar. Iam ser feitas partilhas, os herdeiros decerto iriam preferir dinheiro a antigualhas.
«Senti a poesia dolorosa do desastre. Sozinho entre preciosidades acumuladas em sucessivas gerações, que me pareciam contar histórias, invadiu-me uma saudade indefinida, motivada pelo conjunto de recordações. Iam abandonar-se, partir em diversos rumos aqueles móveis e quadros, por tantos anos companheiros».
Poderíamos ficar por aqui – que, em catadupa, quantos casos desses conhecidos nos viriam à cabeça e, porventura, até antojaríamos que esse é capaz de vir a ser o nosso também. Nesse dia, porém, algo de aparentemente inesperado aconteceu para Gabriel Pereira:
«De súbito, um minuete estalou o silêncio triste: um belo relógio de carrilhão anunciava o meio-dia com a sua fina sonoridade. Na ocasião, pareceu-me ver no relógio uma implacável ironia. Acabou o minuete, soaram no timbre, espaçadas, as doze horas, agudas, cruéis; e esmoreceu lentamente a última. O tempo! O tempo que tudo vai mudando e gastando».
Parei. Ainda me parece estar a ouvir o som metálico do relógio, a lembrar-me que, afinal, iria ser verdade: que também o relógio do minuete iria partir, incógnito, para outras paragens.
Enlevo, felicidade! – para isso contribuem (queremos que contribuam!) os quadros que comprámos ou nos ofereceram com dedicatórias até; os móveis utilitários; aquele sofá preferido para uma leve sesta; os dois ou três livros a ter sempre à mão, basto sublinhados a lápis eles estão!…
Enlevo, felicidade, património. Valor venal, valor de memória, de valor impessoal algum dele – a ultrapassar as soleiras daquela porta e a merecer, quiçá, um dia, lugar de relevo em museu.



