A PALESTINA E A INÉRCIA ÁRABE

ENTRE A RETÓRICA DA SOLIDARIEDADE E O CÁLCULO DO PODER

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A tragédia palestiniana prolonga-se há décadas perante os olhos do mundo. A cada novo capítulo de violência e desumanização, renova-se a expectativa de que os países árabes assumam um papel ativo na defesa de um povo irmão. No entanto, essa resposta raramente ultrapassa o campo das declarações formais ou da diplomacia estéril. A ausência de uma ação efetiva — seja ela militar, política ou económica — revela-se não apenas como falha moral, mas como reflexo de uma estrutura de poder profundamente condicionada desde as origens desses Estados.

A maior parte dos países árabes modernos é fruto direto da engenharia colonial europeia do século XX. Após a queda do Império Otomano, potências como o Reino Unido e a França traçaram fronteiras arbitrárias sobre o mundo árabe, criando Estados sem respeito pelas dinâmicas culturais, étnicas ou históricas das populações locais. Tal e qual como fizeram em África. Escolheram famílias colaboracionistas para se instalarem no poder, a quem coroaram como reis, não só como pagamento pelos serviços prestados mas, principalmente, porque essas elites estavam disponíveis para continuar a colaborar com os interesses coloniais. São as mesmas famílias que ainda hoje estão no poder. Em vez de processos de autodeterminação, assistiu-se a uma transição do colonialismo direto para uma forma de neocolonialismo institucionalizado.

Este passado não é apenas história. Ele explica a natureza de muitos regimes árabes atuais: autoritários, dependentes da proteção e legitimação do Ocidente, e receosos de qualquer iniciativa que possa comprometer esse apoio. Estes Estados, frágeis nas suas bases internas, sabem que o antigo colono continua a ter meios para reverter os poderes instalados. Por isso, a inércia face à agressão israelita não se deve apenas a cálculo político, mas a um medo enraizado de que desafiar Israel seja interpretado como desafiar o Ocidente, e que isso leve à desestabilização interna ou até à sua substituição.

Contudo, há exceções reveladoras. Os Houthis, movimento rebelde que controla grande parte do Iémen, constituem um exemplo de liderança não derivada do sistema colonial clássico. Isentos da tutela do Ocidente e profundamente hostis ao seu domínio geopolítico, os Houthis têm adotado uma postura beligerante em apoio da Palestina. Os ataques a navios ligados a Israel no Mar Vermelho, por mais controversos que sejam, evidenciam uma autonomia política e uma disposição de confronto ausentes na maioria dos governos árabes. O facto de não deverem o seu poder ao reconhecimento ocidental liberta-os das amarras que limitam outros regimes. Mesmo sob sanções e bombardeamentos, conseguem projetar uma ação simbólica e estratégica com impacto global, algo que nenhum dos poderosos Estados árabes “oficiais” ousa tentar.

Navio mercante atacado ao largo do Iémen pelos Houthis em 8 de abril de 2025

Os Houthis são quem salva a “honra do convento” no grupo de Estados árabes que se deviam envergonhar por terem entregue a defesa dos palestinianos a grupos armados pelo Irão, Estado muçulmano mas não árabe.

Sayyed Abdul-Malik al-Houthi, o líder do Ansarullah do Iémen, disse que “Não somos como aqueles que assistem aos crimes do inimigo em Gaza. Pelo contrário, estamos a cumprir a nossa responsabilidade perante Deus e continuaremos a apoiar o povo palestiniano oprimido.”

Nas ruas árabes a causa palestiniana continua a mobilizar milhões de pessoas. Há uma evidente clivagem entre a voz popular e os discursos oficiais dos sheiks e príncipes. As lideranças árabes estão a alimentar um sentimento de frustração popular que lhes pode trazer dissabores. Como já aconteceu antes, a Palestina pode voltar a ser o catalisador de revoltas e transformações políticas profundas.

Em suma, a inércia árabe face ao genocídio em curso na Palestina é inseparável da forma como estes Estados foram concebidos e dos compromissos que os atuais líderes herdaram. Até que se quebre esse vínculo estrutural com o poder colonial, hoje reconfigurado sob outras formas, a solidariedade com os palestinianos continuará a ser uma falsa promessa de discursos vazios de consequências.

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