A reforma do Estado para os amigos ou a raposa no galinheiro

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fotomontagem, imagem ilustrativa

O ministro da Reforma Administrativa, que no primeiro dia da Web Summit afirmou que Portugal tem condições para se tornar líder mundial na IA, num anúncio estilo promoção do Pingo Doce, é o mesmo que apresenta como uma das primeiras medidas da reforma do Estado o fim do visto prévio do Tribunal de Contas.

A ideia é simples: a pretexto de acelerar a contratação pública, as despesas do Estado, das autarquias e de centenas de entidades públicas deixariam de ser objeto de autorização prévia de fiscalização de legalidade para passarem apenas a ser auditadas depois de realizadas.

A razão para o fim do visto prévio – diz o Governo – é a necessidade de reformar o Estado e de introduzir mais eficiência na gestão da coisa pública, o que se trona difícil de compreender, porquanto o Tribunal de Contas, nas situações em que os pedidos das entidades públicas são corretamente instruídos, demora, em média, menos de 15 dias a dar resposta, sendo a percentagem de recusa de vistos absolutamente residual.

Esta ‘pseudo reforma’ vai causar uma grave disrupção no controlo da despesa pública, pois, sem aquele mecanismo dissuasor e disciplinador, as entidades públicas vão poder gastar o dinheiro dos nossos impostos, sem controlo, porque sabem que as auditorias posteriores à legalidade dos gastos são menos eficazes e já não se podem emendar os erros e o eventual favorecimento de grupos económicos. Ou seja, anula-se, a coberto da ‘reforma do Estado’, uma das garantias, a montante, da prevenção da corrupção e do desperdício de dinheiro dos contribuintes. Como escreve o Desembargador Manuel Soares, ‘a raposa passa a ter na mão a chave do galinheiro’.

O ministro da Reforma Administrativa também afirma que na maior parte dos Países da Europa não existe um Tribunal de Contas e muito menos o visto prévio. Países como Espanha, Itália, França, Grécia, Alemanha e Inglaterra têm predominantemente uma fiscalização a posteriori, mas existem exceções e alguns mecanismos de controlo prévios, ou seja, possuem um modelo jurisdicional híbrido, como em Itália ou em França. No sistema francês existe, também, um controlo prévio administrativo, mas que se realiza antes do pagamento. Em Itália existe a combinação dos dois tipos de fiscalização: uma a posteriori, quase nos mesmo moldes que os exemplos anteriores, e outra preventiva, que é limitada a certos atos e tipos de contratos, não sendo generalizada.

A verdade é que o Código da Contratação Pública, que transpôs a Directiva 2014/25/UEdiretiva-mãe que estabeleceu as regras e procedimentos para a contratação pública a nível europeu, com o objetivo de harmonizar e simplificar os processos entre os vários estados-membros foi, mal parido ou bem parido, no interesse de quem fez a transposição, trazendo, na verdade, para o ordenamento jurídico português a maior das confusões, em benefício da litigância e em prejuízo do desenvolvimento económico.

Daqui decorre que iniciar a ‘reforma do Estado’ pelo fim do visto prévio do Tribunal de Contas é uma falácia e um embuste, revelando aquilo a que o ministro da Reforma da Administração Pública quer: facilitar os grandes negócios do Estado com os grupos privados. Porque a entropia à celeridade contratual passa pelos concursos mal organizados, autênticos passadores de irregularidades, que provocam demoras nas adjudicações, o que abre a porta a recursos dos concorrentes excluídos. Ora,  seria por aqui que deveria iniciar-se, nesta área, a reforma do Estado, pela revisão do Código da Contratação Pública e pela elaboração de concursos sem mácula.

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