A COMISSÃO EUROPEIA E A SOMBRA DA CENSURA SOBRE JORNALISTAS

SOBRE O DUPLO CRITÉRIO DA COMISSÃO EUROPEIA

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Em 16 de outubro, a porta-voz da Comissão Europeia, a portuguesa Paula Pinho, recusou-se a responder a uma pergunta de um jornalista italiano da Agenzia Nova, sobre se Israel deveria pagar pela reconstrução de Gaza, à semelhança do que se pretende que a Rússia faça quanto à Ucrânia.

Textualmente, a pergunta foi: “a senhora já disse mais de uma vez que a Rússia devia pagar pela reconstrução da Ucrânia, na sua opinião Israel deve pagar pela reconstrução de Gaza?”

Na altura, Paula Pinho respondeu classificando a pergunta como uma “questão muito interessante”, para a qual não tinha qualquer comentário a fazer.

vídeo: a pergunta fatídica

Alguns dias depois, o jornalista Gabriele Nunziati foi despedido da Agenzia Nova.

No dia 9 deste mês, no mesmo anfiteatro em Bruxelas onde as conferências de imprensa costumam ser exercícios coreografados entre perguntas previsíveis e respostas ainda mais previsíveis, aconteceu algo raro: outro jornalista foi ao repique, repetiu a mesma questão que levou ao despedimento de Nunziati.

Vincenzo Genovese, da Euronews, confrontou a Comissão Europeia com a demissão do colega Gabriele Nunziati, despedido depois de ter ousado colocar a questão que muitos evitam: se a União Europeia exige que a Rússia pague pela reconstrução da Ucrânia, porque não deveria exigir a Israel que pague pela reconstrução de Gaza?

Mais uma vez, a Comissão Europeia “chutou para canto”, não respondeu.

vídeo: o repique do canal Euronews

A pergunta é simples. Lógica. Democrática. Tão democrática, aliás, que deveria ser respondida sem dramatismos. Mas a Comissão preferiu refugiar-se num mantra de praxe: “Comprometemo-nos com a liberdade de imprensa.” O equivalente europeu ao “não tenho comentários neste momento”.

Não responder já é, em si, uma resposta. Esta resposta revela mais sobre o desconforto político do que sobre a pergunta em si. Revela que há temas onde a Comissão fala com voz de trovão e temas onde sussurra, tropeça nas sílabas e olha para o relógio à espera que o tempo passe depressa.

AS PERGUNTAS NÃO DEVERIAM SER O PROBLEMA

Para os políticos, o problema é saber o que responder a determinadas questões.

A demissão de Gabriele Nunziati pela Agenzia Nova — que justificou que a questão “não se justificava” — é o episódio mais recente de uma velha coreografia europeia: quando a pergunta expõe contradições estruturais da política externa, a culpa nunca é da incoerência, é do jornalista que a revelou.

A Comissão Europeia nega, claro, ter contactado a agência para pressionar a demissão. Talvez seja verdade. Talvez não. Mas a beleza (ou a fealdade) do sistema é que, na maior parte das vezes, nem é preciso telefonema. A autocensura instala-se porque todos já sabem o que “fica mal” perguntar. E, neste caso, a pergunta calhava mesmo muito mal. Não para o jornalismo. Para a Comissão.

GAZA E UCRÂNIA: O DUPLO PADRÃO

A questão de Nunziati expõe um desconforto que muitos governos europeus preferem evitar: a política externa da UE está construída sobre uma moralidade seletiva. Sobre Kiev, fala-se de responsabilidade, reconstrução e agressão. Sobre Gaza, fala-se de “complexidade”, “contexto” e “evitar escaladas”. Quando a Rússia destrói, deve pagar. Quando Israel destrói, mudemos de assunto.

É isto que torna a pergunta tão perigosa: não a sua agressividade, não o seu tom, apenas o seu conteúdo. Obriga a Comissão Europeia a escolher entre duas opções, ambas politicamente desconfortáveis: defender critérios universais e coerentes; admitir que a coerência termina onde começa a conveniência geopolítica. Nenhuma das duas serve para uma conferência de imprensa tranquila.

O JORNALISMO NÃO É PROPRIEDADE DE GOVERNOS

Este episódio ilustra algo ainda mais grave: o medo estrutural das empresas de comunicação face ao poder político. Não é um medo explícito, declarado ou assumido. É um medo que se manifesta nos corredores, nas reuniões editoriais, na escolha das palavras e na escolha dos silêncios.

As democracias europeias gostam de dizer que têm “liberdade de imprensa”. E é verdade. Têm liberdade para trabalhar, até ao momento em que alguém faz uma pergunta que incomoda. Depois disso, prevalece o velho instinto corporativo: sacrifica-se o jornalista para preservar o “bom ambiente institucional”.

Nunziati não foi despedido por ter dito uma mentira. Não foi despedido por ter insultado alguém. Foi despedido por ter feito o trabalho que, em teoria, todos os jornalistas deveriam fazer.

NO FIM SOBRA HIPOCRISIA

A Comissão Europeia diz que não pressionou ninguém. Pode até ser verdade. Mas o chato daquele jornalista não voltará a incomodar, porque há pressões que não precisam de ser exercidas. Basta existir a perceção de que o poder não gosta de certas perguntas para que muitos diretores concluam, por precaução, que é melhor evitá-las.

E, no entanto, a pergunta permanece. Não desaparece com demissões. Não desaparece com declarações vazias sobre liberdade de imprensa.

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