A pergunta ficou no ar, a propósito da legenda da arca ossuária que se mostra no Museu Municipal Leonel Trindade, em Torres Vedras, sobre que tivemos ocasião de escrever. Pois não é que a identificação da defunta deu azo a contundente polémica antiga – ou não fôssemos, todos nós, atreitos a alimentar uma boa discussão por dá cá aquela palha!?…

Quem foi Aldonça Anes? A questão é óbvia, depois de termos satisfeito a nossa curiosidade acerca da arca que, um dia, suas ossadas albergou: sabe-se em Torres Vedras, algo mais desta senhora? Sabe-se.
NO JORNAL BADALADAS
A 1 de Novembro de 1952, Rogério de Figueiroa Rego (eminente paleógrafo, investigador e historiador, então presidente da Câmara Municipal de Torres Vedras, que o foi entre 1946 e 1959), escreveu um artigo no jornal Badaladas (onde as elites locais publicavam, em catadupa, artigos de história e cultura local), precisamente quando Aurélio Ricardo Belo (também ele um insigne arqueólogo, numismata e epigrafista, director jubilado do museu, a cujos destinos presidira entre 1932 e 1950) ia já perto da sua vigésima “nótula” “sobre arqueologia de Torres Vedras e seu termo”, que publicava regularmente naquele jornal.



O artigo de Figueiroa Rego intitulava-se “Uma arca funerária da Igreja de Santiago” e dava conta da “redescoberta” que fizera da arca ossuária, numa dependência daquela igreja, por volta de 1949, e da sua “remessa” para o museu municipal. A preocupação do autor era, precisamente, desvendar quem seria a Aldonça Anes. Estava quase a desistir da busca, diz ele, quando leu o pequeno artigo de José da Cunha Saraiva, “A Quinta da Picanceira“, que falava da sua proprietária, Aldonça Anes, permitindo, assim, a sua identificação.

Ricardo Belo, quem sabe se por ver um “concorrente” a procurar desvendar inscrições latinas no palco jornalístico que ele próprio dominava com as suas “nótulas” de epigrafia romana, vai de fazer uma nótula de recensão ao artigo do concorrente, à laia de quem lhe dá uma grande lição. A lição foi, de facto, tão extensa, que ocupou várias “nótulas”, que intitulou de “História e Genealogia“, publicadas durante oito meses! (o jornal era quinzenário). Partindo de um erro grosseiro que cometeu logo no início, com a conversão para a Era Cristã de uma data já previamente convertida pelo autor, alegava Ricardo Belo que a Aldonça teria sido uma famosa concubina de D. Afonso III, porque “afinal havia outra” Aldonça, e invocar uma amante do rei seria sempre mais apelativo para os leitores, para além da aura de realeza que carregava.

Figueiroa Rego, numa edição seguinte, expôs-lhe muito educadamente, mas com grande picardia, o erro em que caíra. Ricardo Belo replicou: sem querer “dar o braço a torcer”, construiu uma hipótese rebuscadíssima para justificar que as duas Aldonças poderiam, afinal, ter sido a mesma, num exercício particularmente caricato, que lhe deve ter dado muito trabalho a maquinar (ele era dado a estas criações inventivas…). Enfim, um “duelo” jornalístico deveras interessante.
Fiquemo-nos, pois, pela Aldonça nossa ‘conhecida’ – que da «outra», naturalmente, el-rei saberia mais que nós!…
Daquela cujas ossadas na arca repousaram – esperamos que ainda durante bastantes anos – sabemos que foi casada com Giral Picanço, de quem não houve descendência e que, no seu testamento, aberto a 10 de Janeiro de 1330, mandou instituir na igreja de Santiago uma capela, com obrigação de missa quotidiana, legando, para o efeito, bens da sua Quinta da Picanceira, no valor de mil libras. Assim, melhor descansaria Aldonça Anes em paz – alheia, como deve estar, a jornalísticas picardias locais…
(co-autoria: José d’Encarnação)