Há coisas que já nem surpreendem. A narrativa disseminada pelos média segundo a qual os Estados Unidos se preparam para atacar território venezuelano – talvez até Caracas — para “combater o tráfico de droga” é uma dessas pérolas de propaganda que Washington renova sempre que precisa de justificar mais uma operação de mudança de regime. É como o velho espantalho das “armas de destruição em massa”, versão latino-americana, passado na trituradora e reembalado com o selo de “guerra às drogas”.
Segundo os EUA, Nicolás Maduro lidera cartéis transnacionais, responsáveis por encharcar o mercado americano de cocaína. Lula da Silva e Gustavo Petro levantam a sobrancelha, mas o resto da comunidade internacional, acobardada, parece preferir o silêncio.
Ninguém no seu perfeito juízo acredita que Presidentes latino-americanos andem a comandar lanchas rápidas no mar das Caraíbas ou a supervisionar carregamentos clandestinos para Miami. Mas a narrativa serve: é simples, moralista, hollywoodiana. Como todas as histórias que o público americano está treinado para consumir.
Execuções no mar alto: justiça ou pirataria com bandeira estrelada?
O mais chocante, porém, não é a narrativa farsola – é o que já está em curso. Nas últimas semanas, dezenas de pessoas foram executadas extrajudicialmente no mar alto por militares dos EUA. A justificação? Eram traficantes. Não houve julgamento, nem identificação confirmada, nem direito de defesa. Apenas apontaram, dispararam e afundaram embarcações ao largo da costa venezuelana.
É curioso observar a facilidade com que alguns fardados conseguem dormir depois de cumprir ordens que violam todas as leis da guerra, do mar e da simples humanidade. Talvez baste a convicção de que são “do lado do bem”. Ou talvez a disciplina militar funcione melhor quando o inimigo é pobre, distante e latino.
O déjà-vu de Noriega
A história, essa senhora teimosa, repete-se. Há mais de trinta anos, Manuel Noriega, Presidente do Panamá, então aliado de Washington, foi transformado de um dia para o outro em narcotraficante número um. A invasão foi rápida, eficiente e “justificada”. Noriega foi levado para uma prisão nos EUA, de onde foi transferido para uma outra prisão em França e, mais tarde, para uma prisão no Panamá, onde acabou por morrer, com cancro. Hoje, é largamente consensual que a súbita demonização não teve nada a ver com cocaína, mas sim com a ousadia do Presidente panamiano em tentar libertar-se do controlo americano sobre si próprio (Noriega foi agente da CIA) e o canal do Panamá.
Se substituirmos “canal do Panamá” por “reservas petrolíferas” e “influência regional”, e Noriega por Maduro, o guião é praticamente o mesmo. Mudam os protagonistas, mantém-se a doutrina: qualquer Presidente da região que ponha em causa a hegemonia americana é imediatamente promovido a ditador sanguinário, narcotraficante ou ameaça global.
O silêncio cúmplice do mundo
Mais perturbante ainda é a anemia diplomática da comunidade internacional. Entre Estados que dependem da proteção americana e outros que receiam o seu poder económico, sobra pouco espaço para indignações morais. Brasil e Colômbia – ironicamente, países que conhecem de perto o efeito destrutivo da “guerra às drogas” – foram quase os únicos a questionar a legitimidade deste delírio bélico. O resto cala-se e observa.
Talvez porque já interiorizaram que, quando os EUA decidem intervir, o debate internacional resume-se a um coro de desculpas, lamentos tardios e relatórios da ONU publicados quando os factos consumados já não têm retorno.
A narrativa perfeita para esconder o óbvio
A verdade nua e crua é simples: as intervenções americanas raramente têm a ver com os pretextos apresentados. Têm a ver com controlo geopolítico, influência estratégica, recursos naturais. Têm a ver com a insistência em manter América Latina, África e Médio Oriente como quintais disciplinados do império.
E têm, sobretudo, a ver com a convicção profundamente enraizada em Washington de que qualquer vida fora das fronteiras americanas vale menos – logo, é sacrificável.
Maduro pode ser autoritário, populista, desastrado na gestão económica. Mas isso não transforma automaticamente os EUA em libertadores altruístas, nem lhes concede mandato para bombardear capitais estrangeiras ao gosto do dia.



