“DIZ-ME O QUE COMES, DIR-TE-EI QUEM ÉS”!…

Ao jeito de aforismo com autor conhecido. Diz-me o que comes, dir-te-ei quem és!...

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Jean Anthelme Brillat-Savarin (1755-1826)

Esta idiomática expressão parece já herdada de uma cultura ancestral como esses compêndios de saber que são os “aforismos”, como esses “ditados” antigos, ainda que hoje já não regulem nossas vidas e dos quais se não conhece inventor.

Mas esta expressão – Diz-me o que comes, dir-te-ei quem és – tem nome de autor, vivo desenho em página de História que se deve a Jean Anthelme Brillat-Savarin que viveu entre 1755 e 1826 e que a crítica considera como o Pai da Gastronomia Moderna, cuja teorização ficou bem expressa no seu livro – A Fisiologia do Gosto – publicada sem menção de autor em 1826, dois meses antes de morrer.

Encontra-se publicado em português pela “Relógio d´Água” e “Companhia da Mesa”.

Aquilino Ribeiro conheceu, em Paris, esta obra e a ela recorre para o aforismo do título desta crónica e para ilustrar, em antológicos textos de seus livros, Aldeia, Terra, Gente e Bichos (1964) e O Homem da Nave, Serranos, caçadores e fauna vária (1968), ao jeito de bom gastrónomo que era, essa delicada receita que é a especiosa preparação da “galinhola”, que não pode fazer-se de acordo com a costumeira preparação dos frangãos da sua terra, em que Maria Chimborgas, cozinheira da aldeia, era expedita.

E é esta mulher quem se espanta quando Aquilino, sibarita que é, lhe explica que, uma vez caçada a galinhola, se deve deixar macerar duas ou três semanas antes de a cozinhar.

E mais lhe diz que não se lhe deve tirar a tripa mas apenas extrair a moela que retém os restos não assimilados do cibato. Depois, experiente que é, acrescenta, ao jeito de quem ensina: – Dobram-se as asas em forna de triângulo, como de resto para todo o bicho que voa ou desaprendeu de voar, o bico crava-se-lhe de coxa para coxa; cobre-se com uma peliça de toucinho – não é  [porventura] ave dos países frios? E assa-se a fogo lento no espeto. (Aldeia, Terra, Gente e Bichos, Livraria Bertrand, 1964, p. 284).

E reafirma que a sua carne rivaliza com a do faisão, sendo de lamentar que a cozinha provincial, escrupulosa por sete, comece por esvaziar-lhe a tripa, que é, segundo Brillat-Savarin, esse brilhante gastrónomo francês, o melhor dela, desfeito em molho de manteiga e cominhos (In O Homem da Nave, Bertrand Editora, 2017, p. 225).

Aquilino Ribeiro, dotado de um extremado amor pela Natureza, caçador encartado que também era, descreve-nos assim alguns traços desta ave migradora, que chegava à sua terra nos finais do mês de Outubro, inícios de Novembro:

As galinholas são aves recatadas, timoratas, quase monásticas, e professam um desdém panteísta pelo sol do meio-dia e a alacridade estival. O seu meio regalado está nos crepúsculos e nas noites de luar. Saem então às clareiras, chamadas pelos machos, que emitem um apelo suave, de todo eólio, único na gama ornitológica. Aproveitam pra se passear, lavar os pés e o bico que, munido de uma pequena protuberância carnuda na extremidade, onde parece residir um órgão táctil especial, se enlameou a espiolhar nos penetrais do cisco a minhoca reboluda e a larva em hibernação. Desse manjar, lançado no laboratório esquisito do seu esófago, é que se gera aquela carne deliciosa, digna apenas de sibaritas e finos pecadores.

Confesso, o meu fraco por esta ave, tanto no monte como no prato (Idem, ibidem, p. 225).

Genuína e sincera, a confissão de Aquilino!…

galinhola

1 COMENTÁRIO

  1. Interessante texto!
    Fez-me lembrar o que faziam certos caçadores conhecidos em relação à perdiz: ” só quando fede se deve cozinhar”! Deve ser por causa das minhocas gordas e das larvas em hibernação no esófago, como dizia Aquilino.
    Arrenego! Bicho ou alimento que cheire mal, jamais… Bem acredito na estupefação da D. Maria Chimborgas que sabia cozinhar à moda tradicional.
    Mas só por curiosidade, na parte mais antiga da morada de uma tia minha (a Casa Velha) onde se cozinhava à moda antiga em forno de lenha, havia uma mesa de manjares na véspera de Natal. Um deles, para as trabalhadoras repartirem e levarem para casa, era uma travessa gigantesca de barro negro com o bucho do cabrito assado.
    Era lavado com água fervente depois de revirado, cortado aos bocadinhos e marinado em vinha de alhos durante um dia. Depois assado no forno com batatinha, deitava um cheiro tão divinal que eu, gulosa, passava lá antes da Consoada e pedia para comer um bocadinho.
    Se não parecesse mal, comia tudo.

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