AS ENGUIAS DA MURTOSA NA FEIRA DE S. MATEUS

O presente texto configura-se como homenagem a D. Zélia Conceição Cardoso da Silva, a mais antiga vendedeira de enguias na Feira de S. Mateus de um moderno tempo. Homenagem a quantas vendedeiras ali vieram desde há mais de um século. Homenagem também aos novos vendedores que ali a acompanham.

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Manjar sempre apetecido na Feira de S. Mateus são as enguias da Murtosa em molho de escabeche. A receita mantém-se inalterada, desde 1942, ano da fundação da “Fábrica de Conservas da Murtosa, L.da”, singular implantação de uma indústria caseira de preparação de peixe em molho de escabeche que hoje permanece, a COMUR – Fábrica de Conservas da Murtosa – adaptada aos novos tempos, fiel, todavia, aos antigos saberes-fazer.

Imagem de calendário de 1948

Receita que traz à memória as tradicionais barricas de madeira com as espetadas de enguias, que depois se desprendiam dos pauzinhos de loureiro para o prato de faiança dos velhos modelos da louça de Sacavém sobre as mesas das bancas da Rua das Enguias, onde uma toalhinha de tecido azul e branco, aos quadrados, ficou na memória de tantos apreciadores do saboroso petisco.

Espetada de enguias

De um anterior tempo, o peixe do mar do porto de Aveiro e de outros portos de mar chegava a Viseu, chegava à feira. Mais a sardinha. Enguias não as nomeia o Foral manuelino de Viseu, de 1514, nem Botelho Pereira nos idos de trinta do século XVII, nem as Memórias Paroquiais em 1758.

Registo escrito apenas se encontra nos finais do século XIX quando as “fritadeiras”, essas heroicas mulheres das bandas do mar visitavam certames, feiras e festas, onde assentavam por todo o tempo em que aqueles e estas demorassem.

Bancas improvisadas, lume de lareira, sertãs de frigir, tabuados de madeira e o cheiro acidulado das enguias saboreadas com batatas cozidas rachadas ao meio, pão e vinho, pelos apreciadores costumados, gente das aldeias que acorria aos recantos sombreados do pouso das vendedeiras, urbanitas que não desdenhavam do manjar.

Foi assim em Viseu, antes que a Rua das Enguias tivesse ganhado fama maior após 1942, quando as enguias se despejavam já dos pipinhos de pau, que, mais tarde, se fizeram de Folha-de-Flandres, de mais asseio, de manutenção mais segura, de idêntico apelo, talvez de diferente sabor.

Na Feira de S. Mateus, passam os anos, mantém-se a Rua das Enguias, uma efémera arquitectura diversamente traçada conforme modas e anos. As enguias sabem bem, como antes, com a companhia que associamos na mesa de madeira, mais cuidada, toalhinhas de plástico aos quadrados, toalha sobreposta de papel e guardanapos, mesmo encanto, pedaço de carcaça, o pão de trigo partido à mão, batatas cozidas com a casca, salada de alface, cebola e tomate, vinho do Dão que poderia servir-se numa pichorra de Molelos ou Barcelos, um caldo verde talvez, os velhos sabores recordados, apelos de vendedeiras, quase pregão, a banca cheia quando as luzes se acendem, quando um vozear de Babel dá pleno sentido a essa festa da gente que chamamos Feira de S. Mateus.

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