Quem foi Quintela

PECADOR OU BENEMÉRITO?

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Defronte da porta principal da Capela de Santa Luzia, na localidade de Paul, freguesia da Freiria de Torres Vedras, ergue-se um cruzeiro que tem, na parte inferior, uma inscrição, que tem dado que falar.

Redigida em português, encimada por uma pequena cruz latina, a inscrição reza o seguinte:

Em frase corrida e grafia actual, a inscrição diz: «De Jesus Homem Salvador, Rei Salvador. O Quintela, seu escravo, esta cruz mandou aqui pôr. Já está feito em pó. Roga por mim, pecador. Pai Nosso. 1696».

A erecção do cruzeiro constituiu, pois, na intenção do doador uma forma de suplicar uma prece, muito ao jeito do que habitualmente vinha expresso nas chamadas «alminhas», em que se convidava o passante a rezar um pai-nosso e uma ave-maria pelas almas do Purgatório.

IHS, da linha 1, são as siglas adoptadas pela Companhia de Jesus: I(esus) H(omo) S(alvator). Na linha 2, o artigo definido é bem elucidativo: a erecção do cruzeiro resulta duma determinação testamentária, que incluiria o pedido da reza de um pai-nosso em sufrágio da sua alma. Para poupar espaço e – se nos é lícito tal pensar – também para ‘dar um ar da sua graça’, o canteiro optou por substituir letras por desenhos: para completar a palavra ‘escravo’, gravou um cravo; em vez de ‘cruz’ pôs o desenho. Na linha 4, interpretar IA por JÁ não padece contestação. O actual doirado das letras levamo-lo à conta de obras recentes e à eventual vontade da Comissão Fabriqueira de dar realce a letras, ainda que, mui provavelmente, se não haja captado, em pleno, o significado do que ali estava escrito. É, à primeira vista, um letreiro arrevesado e vale a pena mostrá-lo como o gravaram há mais de 300 anos! Quintela merecia-o, de facto.

A capela, seguramente de grande devoção popular, vem mencionada nas Memórias Paroquiais de 1758 como Ermida de Vera Cruz; e a cartografia militar de Filipe Folque, de 1856, menciona o local como Santa Cruz.

Foi, seguramente, a identificação do Quintela ali mencionado que mais suscitou a atenção: quem poderia ter sido este senhor que assim tão publicamente se proclamara pecador e pedia a reza dum pai-nosso?

Encetaram-se, pois, as indagações, até porque havia informação de que um Quintela desenhara e assinara uma planta do Chafariz dos Canos, guardada no Arquivo Municipal. Pensando que, afinal, o indivíduo poderia mesmo ter sido um artista, lá se vasculhou o Arquivo, juntamente com a sua responsável, Paula Silva, a quem agradecemos toda a atenção.

Conclusão: a planta do Chafariz não estava assinada e fora feita cerca de 200 anos depois da época em que viveu o dito Quintela. Por outro lado, a ser de um Quintela, tratar-se-ia de Inácio Pedro Quintela Emaús, Corregedor da Comarca de Torres Vedras que, quase dois séculos mais tarde, em 1831, mandou fazer no chafariz um novo tanque, para bebedouro dos animais de carga e tracção.

Havia, porém, uma outra notícia: em 1862, os anotadores (José António da Gama Leal e José Eduardo César de Faro e Vasconcelos) da “Descripção historica e economica da villa e termo de Torres-Vedras: parte historica” do Padre Madeira Torres (2.ª ed. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1862, p. 65), referem, a propósito do Aqueduto de Torres Vedras:

Existe no Cartorio da Provedoria um processo curioso relativo a este objecto, n’elle se acham duas plantas do Aqueducto, e a segunda é illuminada, e tem em baixo a seguinte legenda «Luiz Rodrigues Quintella fecit anno Domini 1656»”. 

Quintela, o benemérito

Será o mesmo? Dessa planta se desconhece, por enquanto, o paradeiro. Todavia, não se fica por aqui! É que poderá não ser ousadia identificar este Quintela com o que é mencionado numa outra inscrição, pintada num painel de azulejos actualmente colocado no baptistério da igreja de S. Lucas, matriz de Freiria, depois de ter sido registado na sacristia da mesma igreja.

O painel de azulejos é contornado por uma barra de azulejos, com uma pequena cartela no topo, com a data “1656” e outra, em baixo, com a inscrição QVINT/ELA * FEC[I]T, «Quintela fez».

Sob esse painel – que apresenta duas figuras afrontadas, uma de cada lado, em jeito de oração, tendo como fundo paisagem de montanha – há uma pequena cartela azulejar, de que apenas resta a metade esquerda com a inscrição:

Um benemérito! Contribuiu para a procissão das Endoenças e para as obras da igreja.

E dele lográmos também encontrar o registo do seu casamento: «Aos cinco dias de agosto de [1]639, por provisão do Reverendo Cabido recebi na ermida de Santo António da Cadreseira [Cadriceira] a Luis Rodrigues Quintela, da freguesia de S. Lucas, com Maria Bernardes, filha de Maria Bernardes da Cadreseira (…)».

Outro documento nos revela que, em 1649, morava com a mulher na Quinta do Paul, junto à ermida.

Se a tudo o que se disse acrescentarmos agora que a Quinta de Santo António da Cadriceira onde o casamento ocorreu era, à época, propriedade de Henrique Henriques de Miranda, favorito de D. Afonso VI e homem do Conde de Castelo Melhor, temos mais um dado de não pouca monta para exaltar a personalidade deste importante benemérito local, cuja memória cumpre realçar.

(co-autoria: José d’Encarnação)

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