Pouco após ter sido declarado o fim das hostilidades na Guerra do Iraque, o filósofo alemão Jurgen Habermas, com o apoio do seu colega francês Jacques Derrida, publicou um manifesto, num dos principais diários alemães, invocando a noção de uma “Europa nuclear”, distinta da Inglaterra e dos novos Estados-Membros do Centro e Leste europeus e definiu-a, sobretudo, pelas suas tradições secular, iluminista e social-democrata – procurando constituir uma identidade europeia com base nessas tradições.
Uma componente chave do manifesto, era a sua insistência na necessidade de um contrapeso para a percepcionada influência dos Estados Unidos, um tema que tem tido grande ressonância em discussões ainda recentes sobre o estabelecimento de uma força militar europeia fora das estruturas de comando da NATO. Este manifesto e os artigos que, em reacção, se lhe seguiram, por parte de outros proeminentes intelectuais europeus, entre os quais Umberto Eco ou Gianni Vattimo, para nomear apenas dois, publicados nos principais jornais da Europa, acenderam um debate sobre a natureza da Europa e das relações transatlânticas, que ainda hoje está longe do seu termo, e que, com a Guerra na Ucrânia, e a alteração do poder nos Estados Unidos, se tornou a chave-mestra para o futuro da Europa, ou melhor da União Europeia, enquanto potência relevante num espaço multipolar, onde pontuam China, Estados Unidos e Rússia.
O que é a identidade europeia? Em que é que deve consistir? Como é que pode acomodar as diferenças entre nações? Estas e muitas outras questões, relacionadas sobre a possibilidade de criar um modo supranacional de identificação, estão no centro de um processo de construção europeia que reconhece já, claramente, as limitações de um “focus” utilitário na cooperação económica. Não é apenas o desdém pelos eurocratas, mas também o facto de que as relações económicas, num contexto de expansão da União, se tornaram objecto de tensos conflitos intraeuropeus, que provocam um sentimento de urgência sobre a necessidade de estabelecer atributos culturais comuns. Aqui, a Europa encontra-se numa tensão contínua entre o desejo de replicar a experiência nacional que olha para os passados partilhados, sejam eles baseados na geografia, nos valores, na religião ou na história, e o reconhecimento de que, aglutinar tais passados num todo referencial comum, complica seriamente a questão.
Alguém sugeriu a razão chave pela qual a “Europa” não foi bem-sucedida em capturar o envolvimento emocional dos seus cidadãos-membros: à União Europeia faltaria o elemento crucial da “libertação” – fosse a libertação de uma forma ilegítima de governo ou a libertação de um domínio externo – aquela “libertação” que, tipicamente, ao longo de séculos, deu origem ao nascimento de novos estados. A incapacidade de visualizar a conclusão do processo de construção europeia como uma “libertação”, através de uma ruptura, dando origem a um momento seminal, repositório de novas esperanças e novos desígnios, restringe, profundamente, o entusiasmo dos cidadãos da Europa.
Ao nível oficial a tendência é olhar para o futuro, vide o desígnio do Euro, com os seus símbolos neutros de pontes e outras ligações, é disso um exemplo. Se examinarmos as representações contidas em manuais, cedo nos apercebemos que a “Europeidade”, se assim lhe podemos chamar, não se funda em termos de origens ou narrativas religiosas e éticas, mas em princípios universais mais abstractos. O equilíbrio entre o universalismo e o particularismo são parte desta discussão. Assim, por exemplo, a sugestão de Habermas, de que 15 de Fevereiro de 2003 – data em que ocorreram as maiores manifestações desde a Segunda Guerra Mundial, em Londres, Roma, Madrid, Barcelona, Berlim e Paris, em protesto contra a Guerra do Iraque e contra o apoio dado por alguns dos Estados-Membros da União a George W. Bush – constitui a data de nascimento de uma esfera pública europeia foi, por alguns, criticada, ao ignorar o facto de que as manifestações contra a guerra do Iraque não foram apenas europeias, foram sim, de facto, mundiais.
Ideais e princípios universalistas, não podem, pois, ser confinados à Europa e aos seus Estados-Membros. Isto é o que torna impossível definir uma identidade europeia ligada pelo território e pela cultura. Mas, paradoxalmente, isto é o que também torna a identidade europeia possível, uma identidade que transcende a Europa e que é legitimada por reivindicações de universalidade em vez de particularismos, ou seja, esta Europa não existe contra os seus “outros”.
Em contraponto, a Europa do manifesto Habermas-Derrida – a mesma que está envolvida num aceso debate sobre as suas políticas multiculturais e transformações demográficas (um eufemismo para a cada vez maior presença de não-cristãos e, mais especificamente, muçulmanos) – parece mais concentrada nas funções coesivas da manutenção de fronteiras, tanto literalmente, como culturalmente.
A ideia de uma “Europa Fortaleza” há muito entrou na corrente geral das políticas de emigração. Figurativamente, a globalização tornou-se uma fonte de refúgio nostálgico para muitos. Terá a ruptura transatlântica sido ou será ainda a percepção antiamericana dos europeus também o reflexo de um hábito que requer um “outro” constitutivo? Na verdade, convém não esquecer, a Cortina de Ferro – e a oposição diametral que lhe deu origem – serviram uma função política e cultural importante. Agora, a ameaça é mais amorfa, perigosa, porque híbrida, e apresenta-se sob a forma de globalização e outras forças desconhecidas. Culturalmente falando, os Estados Unidos parecem funcionar como um substituto para os efeitos negativos de um mundo que se globaliza. Globalização é, aliás, frequentemente percepcionada como americanização.
TRUMP NUNCA GOSTOU DA EUROPA
As referências aos Estados Unidos parecem muitas vezes servir o papel do novo “outro constitutivo” da Europa. A um nível mais profundo, as tensões transatlânticas são também uma função de concepções de universalismo distintas e em competição. A insistência da União Europeia em ser um projecto baseado numa memória colectiva de valores universalistas, colide com a missão universal dos Estados Unidos e com uma resistência global crescente a um universalismo percebido como uma imposição do ocidente. Esta concepção acentuou-se e ganhou relevo com o novo mandato de Trump, que nunca gostou da Europa e que usa a “guerra comercial” para impor um forte domínio dos Estados Unidos sobre a Europa, numa tentativa de desagregação do bloco europeu, com o claro intuito de acentuar a vertente bipolar do Mundo, reduzido a duas esferas de influência, a China e os Estados Unidos.
Neste confronto e na essência do “outro constitutivo”, verifica-se que o mesmo não se encontra apenas no exterior da Europa. Está já no interior das suas fronteiras: a crescente população islâmica e os novos Estados-Membros da Europa Central e de Leste. Relativamente a estes últimos: tendo tido de preencher uma longa lista de condições políticas e económicas para aderir à União Europeia, bem como tomar parte em negociações mais recentes sobre a liberdade de circulação de pessoas e trabalhadores, os novos Estados-Membros têm-se vindo a sentir como uma espécie de cidadãos de segunda classe no projecto europeu.
Se a isto juntarmos a incapacidade da “velha Europa” em concordar com uma Constituição, e face à ausência de um momento constitucional, esta percepção levantou um rol de preocupações entre os novos membros. Em última análise, a idealização da Europa (que para muitos deles ainda é a Europa Ocidental) está agora exposta a momentos transnacionais que requerem ajustamentos e são solo fértil para a desilusão decorrente de expectativas que ficaram por cumprir.
Podemos afirmar que é inescapável o reconhecimento de que as divergências e o fosso escavado entre a Europa e os Estados Unidos, durante a Guerra do Iraque, tiveram um significado durável patente na modelação do projecto europeu, não obstante, a inflexão produzida pela entrada em funções da administração de Barack Obama.
TRUMP, UCRÂNIA E GAZA DIVIDIRAM A EUROPA
Os últimos alargamentos da União para acolher os países da Europa Central e de Leste, e a consequente tensão entre visões antagónicas ou pelo menos dificilmente conciliáveis sobre a relação transatlântica, apontam claramente para a urgência de clarificar as percepções, os entendimentos do “outro”, de cada um dos lados do Atlântico. Apesar das ocasionais críticas acrimoniosas, a acesa e vibrante discussão produzida nos últimos tempos entre alguns dos mais dignos e destacados representantes das elites intelectuais e culturais da Europa e dos Estados Unidos, é por si só testemunho da importância de uma esfera pública não apenas europeia, mas também transatlântica.
Porém, muitas destas considerações foram alteradas por três acontecimentos, a invasão da Ucrânia, a Guerra em Gaza e a reeleição de Trump. Qualquer delas perigosa para a Europa, que se viu confrontada, por graves divergências internas, e com uma total incapacidade política para dar uma resposta clara e unívoca quanto a qualquer um deles.
Assistimos a uma desorientação, total, na resposta à invasão da Ucrânia, em que se acentuou, a conflitualidade interna quanto à integração dos países do centro da Europa, na União Europeia. Estes países, que partiram para a integração com uma expectativa elevada, sentem a desilusão provocada pela crise económica e social que a Europa atravessa, têm uma forte rejeição pelo fluxo emigratório que assola o espaço europeu e elegeram governos conservadores, próximos da Federação Russa, ou seja, alguns países que são parte integrante da União Europeia, com direito de veto que pode condicionar as acções e as políticas europeias, estão mais alinhados com a Federação Russa do que com a União Europeia, o espaço económico e politico em que, num determinado momento do seu percurso, após o fim da União Soviética, escolheram integrar. Esta clivagem impõe uma análise às causas deste divórcio, bem como à necessidade de se encontrar uma solução para o problema, que coloca em causa a União Europeia, enquanto bloco económico e político.

E, chegados aqui, a pergunta clara é esta, os europeus querem uma Europa forte, num Mundo multipolar, um espaço de liberdade e de democracia e um dos vectores e ponto de equilibro desse multipolarismo, ou querem uma Europa autocrática, dividida e refém dos Estados Unidos, num Mundo bipolar, com dois centros de poder, um em Pequim e outro em Washington? A escolha não é fácil, porquanto a Europa atravessa uma forte crise, social, económica, moral e cultural, está dilacerada por pulsões radicais, o que impede um debate com racionalidade e objectividade.
Neste clima conturbado, em que a Europa se encontra, sem que haja uma liderança forte para responder a uma administração norte-americana errática, com ambição de liderar o Mundo, a ameaça de um crescimento de governos autocráticos é real, sendo tal crescimento, potenciador da desagregação da União Europeia, colocando fim ao “outro construtivo”, abrindo caminho a um conflito interno entre as democracias liberais, que subsistam e as autocracias emergentes.
Este é o dilema com que a Europa se confronta, podendo-se, hoje, questionar, se alguma vez existiu uma “identidade europeia” ou a vontade de uma evolução para um Estado Federado, agregador dos interesses comuns dos Países do espaço europeu.



