A recente guerra verbal entre a Televisão Pública de Angola (TPA) e o ultra-direitista André Ventura reabriu um debate que muitos insistem em ignorar: a forma como determinados discursos populistas, inflamados e politicamente incivilizados procuram destruir, por oportunismo eleitoral, uma relação histórica que custou demasiado para ser reconstruída.
Assistimos, nos últimos dias, a um espetáculo indigno. Primeiro, o pivô da TPA, Ernesto Bartolomeu, reagiu às declarações provocatórias de André Ventura e classificou-o, em direto, como “mentecapto”, acrescentando que, se por algum cataclismo fosse eleito Presidente da República, os portugueses emigrariam e Ventura ficaria “a governar as cabras da Beira Alta e da Beira Baixa”.
A resposta do líder do Chega não tardou: chamou tirano, corrupto e ladrão ao Presidente João Lourenço – um chefe de Estado de um país soberano que celebrava, justamente, 50 anos de independência. Esta escalada verbal seria apenas ridícula se não fosse profundamente perigosa.
A HISTÓRIA COMO ARMA ELEITORAL
A desilusão que sinto é imensa. Ver um português em plena campanha eleitoral, consciente da fragilidade que a memória histórica ainda provoca entre Portugal e os países africanos que colonizou, optar deliberadamente por incendiar relações diplomáticas, ofender símbolos nacionais e instrumentalizar o passado colonial para ganhos internos, é mais do que lamentável: é irresponsável.
Ventura sabe que existe, nos países africanos de língua portuguesa, uma profunda sensibilidade histórica – não apenas contra o colonialismo, mas contra qualquer discurso que cheire a superioridade racial ou a nostalgia imperial. Apesar disso, escolhe alimentar tensões, manipular feridas ainda não totalmente cicatrizadas e degradar a imagem de Portugal no espaço lusófono.
O líder do Chega age como se a História fosse uma arma eleitoral. E isso, para um país que tem em África uma parte essencial da sua identidade, é perigoso e moralmente inaceitável.
ANGOLA, 50 ANOS DE INDEPENDÊNCIA, O PAPEL DE PORTUGAL
Enquanto Ventura insultava chefes de Estado e alimentava polémicas vergonhosas, o Presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, cumpria com dignidade o papel que lhe cabe: representar Portugal numa data histórica para Angola.
Marcelo ouviu João Lourenço referir que o colonialismo português oprimiu o povo angolano “durante séculos” – uma afirmação factual e historicamente irrefutável – e, em vez de reagir com arrogância ou revanchismo, sublinhou que as relações entre ambos os países “nunca estiveram tão bem”.
A intervenção de António Costa, enquanto Presidente do Conselho Europeu, foi igualmente equilibrada: saudou o marco histórico, reconheceu o fim do colonialismo europeu e apelou a uma parceria forte entre Angola e a União Europeia. Tudo no registo diplomático que se exige.
Portugal oficial esteve à altura do momento. Ventura, pelo contrário, fez questão de rebaixar o país e provar, uma vez mais, que não possui maturidade política para defender os interesses nacionais – nem a sensibilidade para compreender a complexidade da história comum entre Portugal e África.
A RELAÇÃO ENTRE PORTUGAL E ÁFRICA
A CPLP, as comunidades migrantes, as relações económicas, as memórias partilhadas e até as feridas históricas tornam a ligação entre Portugal e Angola – e entre Portugal e África – demasiado profunda para ser tratada com leviandade.
Nenhum português deveria aceitar que, em pleno século XXI, um político nacional tente quebrar laços que tantas gerações sacrificaram para construir e reconstruir. As relações lusófonas não pertencem aos populistas: pertencem aos povos.
A verdade é esta: Portugal precisa de África tanto quanto África precisa de Portugal; o futuro da lusofonia exige maturidade política, não insultos; a História é demasiado séria para ser usada como munição eleitoral.
A DEGRADAÇÃO DA POLÍTICA PORTUGUESA
A polémica entre a TPA e André Ventura não é apenas uma guerra de palavras. É o sintoma da degradação da política portuguesa quando se permite que o ódio, o ressentimento e o populismo superem a inteligência diplomática e o respeito pela história.
Como lusófono, como africano e como alguém que acredita na importância crucial da cooperação entre os nossos povos, recuso aceitar que um político – por mais barulho que faça – destrua o que tantos lutaram para construir.
A lusofonia merece melhor. Angola merece respeito. Portugal merece líderes à altura da sua história, não agitadores que transformam a política externa num palco de insultos.



