Silêncio

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Entro no silêncio da igreja, preciso de me refugiar do ruído do mau tempo. Não encontro a paz, apenas uns turistas de fugida e dois oradores sentados. Gosto de me ajoelhar no suporte de madeira para o efeito, sinto algum comodismo nessa posição, mas a inquietação não me deixa. No altar uma mulher aspira as migalhas das hóstias e os restinhos de terra batida dos sapatos do padre, ou de algum acólito, ou ainda de uma beata que foi mudar as flores. Cristo não está presente nem nenhuma santidade maior. Sobra apenas um altar aspirado com um bico de pato. Nada nem ninguém me toca ali, saio sem pestanejar, leio de novo a palavra silêncio estampada na porta, entro no barulho do inverno.

Sigo para o supermercado, saio pela porta do Uber, entro em casa e na roupa de existir, engulo quase todo o sumo de ananás da garrafa bonitinha, mergulho no metro e elevo-me ao santuário do dragão.

Deito fora conversa circunstancial, afundo a loiça na máquina, caio na tentação de uma laranja doce, sento-me a ler. Levanto-me para os “que deseja, muito obrigada”, afundo mais loiça, ergo-me para a conversa do colega, nova leva de “que deseja, muito obrigada”, engulo um café, inspiro um cigarro, esmago pão, mais uma voltinha de “muito obrigada”, sento-me a ler. A literatura, página a página, dissipa o barulho do inverno, espairece o ruído. Entretanto, desfiz a inquietação no moinho de café.

Oiço um plim no telemóvel, é ela, está em Macau. Sorrio ao ler mensagem. “Faz uma mala de fim de semana, passa a vida a ferro, e vem cá uns dias, voltamos juntas”. Volto a sorrir, vou para responder, mas chega um anexo: os bilhetes de ida e volta para Macau. Nova mensagem: “O avião sai daqui a três horas!”

Mantenho-me quieta, em silêncio, frente ao portátil durante cinco minutos, mais coisa menos coisa. Não é nenhuma brincadeira… não é.

Empurro-me da cadeira para fora e faço a mala. Sento-me de novo e uso o portátil e o telefone em simultâneo. Adio tudo o que posso, desmarco o que não posso. Sou livre!

Esvazio a garrafa de sumo de ananás, entro para dentro das botas todo-o-terreno, pego nos óculos de sol exóticos, enfio-os na mala, mando para fora o livro de 490 páginas que comecei. Vou lá ter tempo para ler!

Saio porta fora, enfrento o barulho do inverno, o ruído da chuva, chego ao silêncio do aeroporto. Fico ali duas horas sentada, já a viajar por Macau e pela Tailândia. Levanto-me, ainda não parti, regresso a casa de cara lavada. Não oiço mais ruído, barulho ou silêncio. Deito-me na cama, pego no livro de 490 páginas.

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