Cem gramas para experimentar

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Decidi que não ia pegar em tachos e panelas. Estava como o tempo: cinzento, invernoso, preguiçoso. Dei-me ao luxo de comer na esplanada, pedi um clássico, bitoque de vaca grelhado, mal passado. Mas ela, que andou a manhã toda comigo, obrigou-me a recolher ao café para degustar um pastel de Tentúgal. Não consigo resistir a este doce. Fiz o trabalho e conduzi muito devagar para casa, ela está sempre a provocar-me. Sacana! A caixa de correio estava cheia. Entre os trinta panfletos de publicidade, descobri o correio do vizinho. A mim, ninguém escreveu.

Não me apetecia trabalhar, cozinhar, ir ao cinema, passear. Não me apetecia nada de nada. Ela faz-me isto de vez em quando.

Voltei a calçar as botas, coloquei um cachecol rubi para contrariar a tarde cinzenta e saí. As refeições congeladas não me seduziram, os restaurantes também não. Fiz compras de trazer por casa e continuei a deambular pela rua como se não tivesse trabalho para fazer até dizer chega.

Parei à frente da montra. Já a tinha visto, mas nunca reparado. Havia café de Timor, Café Selvagem, de Mistura Forte … tinha cafeteiras de saco e de pressão, latas de chás daqui e dali, bolos secos e bombons.

Entrei na loja e recuei ao tempo em que não era nascida e as lojas eram  todas assim, cheias de pormenores, de artigos irrepetíveis, elegantes. Atrás do balcão, o casal parecia estar ali desde sempre. Hesito entre o de Timor e aquele que “mais se vende”, leva o nome e o carimbo do bairro. Opto pelo segundo. A senhora das faces rosadas dá-me um saquinho de papel-manteiga com “cem gramas para experimentar”. Pago e, sem grande expectativa, pergunto se tem de plantas secas para infusões. Com toda a naturalidade diz que sim senhora, que há lúcia-lima, camomila, cidreira… chás à vontade do freguês. Arregalo os olhos, dou um passo atrás: tem chá príncipe? Diz sim senhora, informa-me que cada saco custa um euro. Pode ser, claro que pode ser. Pago. Lembro-me ainda da hortelã-pimenta. Também tem. Abro o porta-moedas à procura de outro euro. Largo a loja com um saco de plástico moderno e vulgar e com três pacotes antigos e invulgares lá dentro. Vou direitinha à pastelaria do bairro. Quero três roscas de ovo, dois corações de chocolate, quatro de coco – dois redondos e dois rectangulares – e duas roscas de manteiga com açúcar em cima.

Ela faz-me companhia até casa. Bato-lhe com a porta na cara, penduro o cachecol e abro o pacote de hortelã-pimenta. Está generosamente bem servido. Cheira tão bem. Fervo água, coloco os bolinhos num prato. Resisto à segunda volta de bolinhos, mas não à terceira chávena de chá. É aconchegante, faz-me perceber que o Inverno até pode ter coisas boas.

Janto o atum com feijão-frade do almoço: atum aos bocados, feijão-frade, cebola e cornichons picados, ovos cozidos cortados às rodelas, coentros picados, que me sabem muito melhor do que a salsa. Azeite, vinagre, uma pitada de sal e pronto, já jantei.

Provo o café. É perfeito. Deixo a loiça para lavar amanhã, abro um novo documento do Word e entrego-me contrariada à obrigação do trabalho.

Olho para a janela. Ela continua lá fora.

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