Sim, essas pedras com letras estão agora a bom recato, depois de largos anos sem delas nada se saber; mas o mistério que as envolve ainda está por descobrir!
Encontraram os trabalhadores do Sr. Engº António Pinto Valejo no lagar da quinta, em Carvalhal Redondo, localidade do concelho de Nelas, um ‘armário’ aberto na parede.
Decidira, nesse Verão de 1985, fazer obras. Mandou descascar a parede e eis senão quando ali se lhes depara uma cavidade quadrangular, de quase um metro de lado e uns 50 centímetros de fundo. Teria servido, decerto, para arrecadar vasilhame. Maior surpresa surgiu, ao verificar-se que as mui elegantes ombreiras laterais estavam bem trabalhadas e ostentavam estranhas inscrições, que, por sinal, os obreiros de antanho haviam preservado e deixado à mostra, para o lado de fora. Abençoados!
Procedeu-se, pois, com o maior cuidado, à retirada dessas pedras.
O Dr. João Luís Vaz, que fazia então o levantamento dos monumentos antigos do distrito de Viseu, teve conhecimento do achado, foi lá, identificou-o como sendo da época romana, pormenorizadamente o estudou e sobre ele houve oportunidade de escrever, em artigo publicado na revista Portugalia de 1987 (p. 63-64), onde logo explicou que se tratava de monumentos dedicados, no século I da nossa era, a uma divindade, aqui não mencionada, por iniciativa de um indígena: Doquiro, filho de Celto.
Como um indivíduo com o mesmo nome mandara lavrar idêntico altar, em Canhas do Senhorim, localidade que fica perto, considerou-se que seria o mesmo, e como, aí, já a divindade vinha identificada como Besencla, concluiu-se que os três monumentos poderiam ser originários do local onde à divindade, no tempo dos Romanos, se havia prestado culto. Um santuário ao ar livre, certamente, como não era incomum na época. A ausência do nome da divindade em dois dos altares justificava-se pelo facto de se destinarem a ser depositados no local de culto.
Dos atributos da divindade pouco se logrou adiantar, na medida em que o nome vinha só assim, Besencla, despido de qualquer outro ‘ornamento’ e ainda se não encontraram mais testemunhos.
Chegou a adiantar-se que o nome, o teónimo, poderia estar relacionado com a designação de Viseu, sabido como é que, na linguagem popular, hoje (e porventura também outrora) amiúde se pronuncia ‘Beseu’. Mas essa eventual relação com o primitivo nome romano de Viseu é hipótese que ora se pôs de parte, por ter aparecido uma inscrição em que a cidade está identificada como Vissaeum.
Já a terminação -cla – e perdoe-me o leitor esta incursão linguística – poderia ser elisão de «cula», um diminutivo vulgar. Recorde-se ‘cubículo’, ‘minúsculo’… Neste caso, um diminutivo que envolveria a divindade num halo de alguma ternura.
Há investigação a fazer, para resolver esse mistério dos atributos, embora seguramente estejamos perante a divindade protectora do local. Não temos, hoje, aqui e além, uma Nossa Senhora do Monte, só porque esse monte sempre fez parte do imaginário das gentes locais?
Que outros mistérios?
Sim, outros mistérios houve. É que o Dr. João Vaz deu a conhecer as pedras, que entraram no domínio científico; estudou-as bem – e ninguém mais se importou com elas. Ou melhor, não foi preciso revê-las; considerou-se que estavam a bom recato e, por isso, o seu paradeiro não constituiu motivo de preocupação.
Eis senão quando, ao passear, tranquilo, num destes dias de Maio passado, pelo jardim público da aldeia, Ricardo Gaidão, com o seu olhar de arqueólogo experimentado e de epigrafista atento, pasmou: no topo dum dos canteiros estavam duas aras romanas! Abeirou-se e identificou-as de imediato: eram as tais de que, aparentemente, se perdera o rasto, por não mais ter havido preocupação acerca da sua preservação!
Ali estavam, de novo, agora não a sustentar o dintel dum ‘armário’, mas a saudar os transeuntes. Sujeitas, pois, às veleidades das intempéries, à mão de semear duma pichação irreverente ou à nocturna cobiça de sábio coleccionador. Sem legenda informativa nem objecto de solene implantação dado o seu histórico valor. Aqui d’el-rei! – gritou-se. E ainda bem.
Quase 40 anos passados, cientes do interesse histórico das pedras, os herdeiros do antigo proprietário doaram-nas à Junta de Freguesia. O executivo, de bonito presente na mão, optou que poderia ser, na verdade, invulgar ornamento para o jardim.
Invulgar era, de facto. Ali, porém, era melhor não ficar. Imperou o bom senso e as aras estão hoje sob a guarda da Câmara Municipal. E há, claro, a intenção de publicamente mostrar o seu real valor como documentos ímpares da primeva religiosidade local.