Algo de fora do comum estava ali, perdido no meio de entulhos. Uma pia? Mas não é que uma das faces laterais estava trabalhada? Vai daí, arqueólogo que se preza não deixa lavras por mãos alheias e não descansou enquanto não pôs tudo à mostra e a bom recato.
O achado ocorreu dentro de um cardanho arruinado em terrenos agrícolas na freguesia de Arcos, concelho de Tabuaço. Com o pronto apoio do presidente da Junta de Freguesia, logrou-se pôr a bom recato essa «arca» de granito de grão médio, com as dimensões, aproximadas, de 84 cm de comprimento x 44/50 cm de largura x 31/32 cm de altura.
O insólito era o facto de apresentar uma face decorada com duas almofadas laterais e uma espécie de escudo central com duas lanças; no interior, duas cavidades e um rasgo para eventual escoamento de água.
E começou a investigação.
Importava, de facto, deslindar a função dessa peça assim esculpida, tanto mais que se encontrara perto de uma via com origens romanas que liga as povoações de Longa e Arcos, via que, aí pelos anos 80 do século XVII, era denominada “estrada do concelho” e, além disso, há castros pré-históricos com ocupação romana por perto.
A primeira ideia foi, por conseguinte, atribuir a pedra à época romana. Fora, porventura, um sarcófago, destinado não a receber um cadáver, dadas as suas exíguas dimensões, mas uma ou duas urnas cinerárias. A observação de imagens de túmulos romanos com algumas parecenças – ainda que se esteja, aqui, perante uma obra grosseira, talhada não em mármore mas no granito local – essa observação gerou a conclusão: é mesmo um sarcófago e pode datar da época romana!
A justificá-lo poderia aduzir-se o facto de a face trabalhada, dividida em três painéis, com os laterais almofadados, apresentar no painel central o que parecia ser uma «caetra», com armas cruzadas por trás (em jeito de panóplia), o que tinha algum paralelismo com representações idênticas em lápides, urnas e sarcófagos romanos. A «caetra» era um escudo luso-galaico que aparece reproduzido em monumentos dos inícios da ocupação romana no Ocidente da Península Ibérica.
Estava-se nesta, quando outra explicação surgiu: trata-se dum lavabo de sacristia!
Seria, nesse caso, obra moderna, porventura ligada à grande preocupação que, sobretudo após o Concílio de Trento (meados do século XVI), a Igreja Católica teve em que o sacerdote lavasse as mãos – em jeito de purificação – no momento em que se preparava para celebrar missa ou superintender a algum ofício litúrgico. O rasgo central teria, pois, essa justificação: para escoamento da água. As descrições eclesiásticas da altura eram, aliás, bem específicas nesse aspecto:
«Uma peça composta por bacia e respaldo, que escondia no seu interior um reservatório de água, encontrava-se na sacristia e servia para a ablução do presbítero, antes e depois da celebração».
Por conseguinte, seria este um exemplar popular, provavelmente de modesta sacristia de simples igreja paroquial, não tendo a decoração significado especial, na medida em que almofadados como esses se inspiravam habitualmente no mobiliário de madeira.
Em que ficamos então: urna cinerária romana ou lavabo de igreja rural católica?
Também aqui a missão do cronista se pode consubstanciar naquela norma científica que reza assim: a resposta é importante, sim; mais importante, porém, é levantar claramente a questão, para que a solução surja a mais adequada, perante os elementos em presença.
Os elementos aí estão; a peça, porém, afigura-se-nos que não deve ficar anónima, desconsolada, sem que um sentido lhe seja dado, agora que se logrou salvá-la do triste abandono em que jazia…
Artigo em co-autoria com Gustavo Monteiro de Almeida e José Carlos Santos
Penso que lavabo nunca. Decerto urna romana em pedra. A decoração da peça e o talhe da mesma penso que não oferecem grandes dúvidas.
Obrigada pela partilha.
Bem hajas, Lídia, pela opinião. Vamos aguardando outras leituras – conformes ou dissonantes. Abraço!