Acordei fortes sensações, adormecidas.
22 de Outubro de 69
Foi no Teatro Gil Vicente, em Cascais, éramos jovens e Arrabal (então com 35 anos, hoje tem 91) um sacrílego a quebrar amarras e a estripar tabus.
Tive ocasião, na altura, de publicar a respectiva crítica, na última página da edição de 1 de Novembro de 1969 do Jornal da Costa do Sol. Estiveram em cena Eunice Muñoz e Santos Manuel; a encenação foi de Carlos Avilez; António Barahona da Fonsecas traduzira (a mesma tradução ora usada); coubera a Luis Noronha da Costa a realização plástica.
E adianto já o que então ajuizei do texto:
«Ali não há “cristianismo”. Há, sim, uma crença ingénua. Algo que, evidentemente, não enche as medidas a ninguém, porque se ficou pela rama. A vivência íntima não entra em cena. É tudo tão exterior como as pinturas que Lilbe vai aperfeiçoar junto ao caixão do filho – enquanto seu marido lê a criação de Eva-extraída-da-costela. Nisso, Arrabal tem razão: um Cristianismo assim, descarnado, que se pratica por medo do Inferno, por ser ‘bonito’, são satisfaz realmente».
25 de Abril de 2024
Passaram num ápice estes 55 anos, até parece que foi ontem e tanto, entretanto, mudou! Para já, ousou-se mostrar e perpetrar os crimes no ambiente soturno dum forte pejado de simbolismos. Aí começou, em Setembro de 68, o declínio do ditador e até se chegaram a vislumbrar esperanças.
Optou o TEC por repor estas duas peças de Fernando Arrabal. Para Oração o ambiente não poderia ser mais adequado: a capela do forte. Sobre o altar, a urna branca da criancinha que os pais por divertimento haviam matado. Para Dois Verdugos, o corredor de acesso ao piso superior, onde a capela está.
Ternurento, sem dúvida, o diálogo naturalmente entrecortado de silêncios entre Rita Calçada Bastos e Luís Lobão, que incarnam às mil maravilhas uma sordidez infantil. Mataram o filhote, divertiram-se e, agora, velam o caixão, prometendo tentar que doravante serão bons como criancinhas. Deliciar-se-ão com a leitura (feita em voz off por João Vasco – e nós a matar-mos saudades da sua voz!…) de passagens da Bíblia: a criação do mundo, a criação de Eva, a cura do cego de nascença… A ingenuidade perfeita, em gestos mínimos, contidos, em expressões ora dolorosas, pungentes, ora soltas numa gargalhada fictícia. Não é uma oração, de facto; é, sim, a vontade de, serenamente, mas quase fingidamente (o espectador não acredita neles, não, não pode acreditar…), virem a ser melhores. Que são ternurentos, são. E quase nos despertam a vontade inconsciente de lhes irmos apresentar pêsames. Não!
Excelente, portanto, o desempenho de ambos.
A peça Dois Verdugos
Mostra um acto diferente, mas igualmente recriminável: a mulher encomenda a dois verdugos que espanquem até à morte o marido. Não se sabe bem porque lhe deu para isso. O certo é, na cena, o debate – enquanto, a partir de determinado momento, se ouve lá mais acima, às escondidas, o flagelar do pobrezito – o debate é entre a mãe, a justificar-se, e os dois filhos, um que está a favor, outro que só por não poder (o irmão não deixa) é que não estrafega a mãe logo ali.
Papéis nada fáceis, portanto, mas que os intérpretes desempenham com aplauso. A mãe é, de novo, Rita Calçada Bastos (uma ‘outra’ Rita Bastos, como é natural); os filhos, João Maria Fialho e Gonçalo Braga. Em 1969, foram Filipe La Féria e Carlos Paulo, e a mãe, Eunice, «de monstruosa versatilidade, arrepiante, num sarcástico sadismo», escrevi em 1969. Também assinalei, na altura, quanto nos esmagavam «aquelas chicotadas ímpias, aquele feroz grunhir»; creio que tudo se passava diante do espectador e, no final, «levado pelos verdugos, atado de pés e mãos, com sal e vinagre nas chagas mortas», «o Homem passou à nossa frente. E nós – acabrunhadamente – também fomos com ele». Na encenação de agora, de Renato Pino, só se ouviram os gritos, nada se via dos açoites. Contudo, adiante-se, a Censura deixou passar o espectáculo e não cortou a crítica, a que, inclusive, se lograra dar relevo na última página do jornal.
A escolha da peça para as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril visou mais – se não erro – aproveitar uma peça de antes da Revolução e mostrá-la, na sua crueza, numa fortaleza simbólica. Nada se diz acerca da sua actualidade. A violência conjugal e familiar, que ambas as peças retratam – e recorde-se que datam de meados do século XX! – estão, contudo, a fazer parte, infelizmente, do nosso quotidiano. Mostrá-las, nuas e cruas, sadicamente, no palco, pode funcionar como exorcismo. Oxalá!
Está previsto que ambas as peças – cuja cenografia e figurinos têm a assinatura de Fernando Alvarez – farão breve digressão, em 2025, por Faro (Teatro das Figuras), Lagos e TIO-Oeiras.