Colinho

Às oito horas já bebia uma meia de leite na esplanada, bem agasalhada no sobretudo. A manhã estava cinzenta e fria, mas bonita. Às nove já punha a vida em dia com a amiga querida, por telemóvel. Às dez, já tinha passado pela farmácia, pelo sapateiro, e caminhava para o metro. Começou a chover.

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Pouca coisa para fazer no job, conversa no chat com o amigo da velha-guarda. Hoje, desencontramo-nos nas palavras, ficámos pelos “nins”, sem falar do carinho que nos vai juntando no quadradinho virtual.

Fui almoçar com o cansaço a pesar cada vez mais. Tinha dormido pouco, fiquei perdida por entre filmes e orgasmos, sempre a pensar nele. No que não interessa, no que tem sexo para dar e vender, mas nenhum amor.

Voltei à secretária, reclamei da porta do terraço que os coleguinhas não quiseram abrir. Estava cheia de calor, desconfortável, transpirada. Fui aos cigarros e café com a colega preferida, sempre, sempre com calor. Chovia torrencialmente.

Ai, o meu guarda-chuva Mary Poppins, cheio de bolinhas coloridas, que me faz flutuar para longe do mau tempo. Onde o terei deixado? Não posso ter guarda-chuvas de que goste, é meu fado perdê-los e são objectos bonitos, tão simples, gigantes contra os moinhos de chuva.

Continuava cheia de calor, finalmente percebi que se aproximava uma gripe. Imaginei-me no metro, apinhado de gente, saí sem pestanejar, uma hora e meia mais cedo. Não escapei à inundação de gente no metro. Doía-me o corpo, o contacto com os outros agredia-me. Quando saí e vi o autocarro, também ele à pinha, nem hesitei, fui a pé.

Desde o job que pensava nela, a única que me reconforta o corpo, o espírito e a esperança, canja de galinha.

Enquanto caminhava cheia de frio, lembrei-me de ti. Era mais simples telefonar-te a pedir para passares pelo talho e apanhares o puto na escola. Não tinha forças para tanto. Mas, depois lembrei-me que ainda não te encontrei, ainda não te amei e gerei um filho nosso. As lágrimas caíram, a chuva. também. Abri o guarda-chuva, este também é colorido, mas não me faz flutuar para longe do mau tempo. Tentei convencer-me de que o desalento era apenas da gripe, da chuva, da emotividade que vem toda ao de cima cada vez que o maldito vírus se mete comigo.

Entrei no talho, comprei uma perna de galinha, a senhora desejou-me as melhoras, o que me deu um pequeno conforto.

Em casa passei da roupa húmida para o pijama dos ursinhos verdes. Na panela, água e sal, a perna demorou a cozer. Juntei mais tarde as massinhas. Esqueci-me da hortelã. Paciência.

Mas, assim que o cheirinho do caldo invadiu o meu palacete, chegou a minha mãe. Aquela mãe novinha, de cabelo curto, todo modernaço, calças de ganga e camisolas justas. Aquela que me levava canja à cama, avisava que estava quente, que me dizia que tudo ia ficar bem. Lembro-me da mobília alentejana branca, com rosas cor de rosa. O quadro do Marco na parede, aquele rapaz dos desenhos animados que corria o mundo atrás da mãe doente. Era uma tragédia pegada, mas todas as crianças o seguiam fielmente. E eu ali deitada, a pensar que não ia sobreviver à febre, às dores de corpo, aos suores frios. Mas, quando a mãe me fazia festas no cabelo e repetia com um sorriso terno que tudo ia ficar bem, tudo ficava. A chuva parou.

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