Nada disso se passou para o espectáculo de 8 de Maio, no Salão Preto e Prata do Casino Estoril. Sim, um ou outro carro parou à entrada a dar nas vistas; mas a maioria entrou para o parque, onde, para dar um ar menos solene, há semanas que não dispõe da Via Verde e há filas para se pagar em dinheiro vivo na caixa, porque cartões multibanco também não são admitidos. Eu pisquei os olhos à feérica iluminação da fachada principal do Casino e acho que as lâmpadas retribuíram o piscar d’olhos, com quem diz «Que é que se lhe há-de fazer? Não há peças!…».
Depois, trajo de gala ou singelo fato escuro só para ocasiões muito solenes, que, para um espectáculo, mesmo de ópera, no salão agora se entra trajado de qualquer maneira, calçado à moda (ai, estes sapatos femininos ora inventados, de salto bem alto, biqueira agressivamente comprida, e tiras no peito do pé, como se de sandálias se tratasse). Podes ir de jeans coçados, rotos, camisa desfraldada, camisola pelos ombros… E até copinho de água ou refresco podes levar na mão.
Louve-se, pois, este nobre descer de patamar. Nobre porque visa levantar quem assim pode imaginar-se no Scala e saborear de igual forma os acordes da orquestra e as vozes bem treinadas de tenores, barítonos, duas mezzo-soprano, uma soprano e baixos. E – embora redigidas em português do Brasil – as legendas lá no cimo vão traduzindo as canções com que os actores / artistas nos brindam, na maravilhosa língua cantante de Dante.
Há 20 anos que o Grupo Chiado, com sede em Lisboa, anda nessa luta de proporcionar espectáculos que, doutra forma, não seriam tão acessíveis. «20 anos intensos, com muita luta, aprendizagem e crescimento, tanto no mercado nacional como no internacional (Cabo Verde, Moçambique e Angola)», lê-se na sua página de apresentação. Assumindo-se «como agência que desenvolve a gestão de carreira dos seus artistas, assegurando a promoção dos seus trabalhos e a produção dos seus espectáculos», faz questão o Grupo Chiado em ousar «projectos até então desconhecidos». E este das óperas é um deles.
Já dele vimos, no Casino, «Nabucodonosor» – Brindou-nos agora com «Madame Butterfly», história de amor interesseiro entre um militar americano e uma jovem japonesa, que, sabendo-se repudiada anos depois e com o filho de ambos nos braços, aceita entregá-lo à outra e, seguindo a tradição do seu povo, acaba por, ritualmente, praticar haraquíri com o punhal que seu pai usara para o mesmo efeito. Pelo meio todas as tramas, o exotismo dos trajes típicos (sempre me fez confusão aquela espécie de almofada que as japonesas trazem às costas ao nível da cintura, qual antepassado das modernas e imprescindíveis mochilas). E, acima de tudo, Puccini, o autor das melodias que nos encantam, mormente aquelas em que um lirismo romântico ganha fôlego maior.
Quase três horas de espetáculo que, afinal, depressa passam. Pausa de 15 minutos após o I acto; o II e o III ficaram juntos e, pela meia-noite, os aplausos de pé fizeram-se sentir.
Não foi possível guardar os nomes dos cantores/actores que, de facto, passaram em legenda no final, para serem lidos mas não copiados. Não me pareceu, todavia, ver nenhum nome português. O espetáculo tem encenação de Federico Figueroa, direção artística de María José Molina, coreografia de Julian Hernandez e a interpretação da Companhia Materlírica España, de Madrid, sob direção de Carlos Diez.
Os personagens são a jovem Butterfly; Suzuki, a sua aia; Pinkerton, o tal tenente da marinha americana; Sharpless, cônsul dos Estados Unidos em Nagasáqui, cidade onde toda a acção se passa, por volta de 1900, na casa da jovem, donde se vê o mar e os barcos que partem e chegam; Goro, o agente imobiliário e matrimonial, que urdiu toda a trama, a casa faustosa ‘herdada’ pelo casamento; o príncipe que fora prometido em casamento a Cio-Cio-Sam, agora Butterfly; o bonzo que naturalmente se opõe à conversão de Cio-Cio-Sam ao Cristianismo, renegada a fé dos antepassados. Há ainda as componentes de um pequeno coro de acompanhamento, o comissario imperial, o notário para o acto e a esposa americana que vai ficar com o filhote do marido.
Agradável viagem no tempo e no espaço, no embalo das vozes e da orquestra.
Agradeço a informação do que se vem passando no Casino do Estoril pelos oportunos textos de José d’ Encarnação, uma vez que tenho vivido como uma freira.
Uma das mais belas interpretações de Madame Butterfly sob direcção artística de Herbert von Karajan, existe em vídeo. É a que tenho. Mirella Freni, a brilhante soprano italiana, não a conseguiu cantar em Teatro algum, com receio de lhe falhar a voz de emoção na parte em que se despede do “filho”.
O tenor e “companheiro” também brilhante era/é Placido Domingo.
Mas em relação a esta ida ao Casino do Estoril, ou à ópera “democratizada”, parece-me que o autor aponta e muito bem, duas falhas:
I- congestionamento do acesso ao parque, filas intermináveis, talvez para se recuar no tempo e nem tudo ser moderno, mas desmotivador para quem vai para uma actividade lúdica
II- o facto de o Grupo Chiado ( terá alguma coisa a ver com a Chiado Editora?) não ter contratado cantores líricos portugueses. Se tem sede em Lisboa e actua nos nossos palcos, não contrata artistas nacionais?…
Há coisas que não se entendem neste país, nem os procedimentos, nem a sua permissão.
Muito grata, José d’ Encarnação. Cá ficamos a saber das linhas e das entrelinhas.
Um grande abraço.