Xeque-mate da rainha

Não me lembro do momento em que a conheci mas nunca esquecerei a voz. Uma voz que impunha respeito imediato, voz rouca mas limpa, assertiva, forte. Era uma senhora, uma matriarca, uma rainha.

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A mãe da Maria era muito dinâmica, sempre para cá e para lá, nos seus negócios de roupa, profissão que abraçou desde sempre.

Havia ainda o café da Maria e do marido que, sem ninguém a autorizar,se punha a gerir. Mandar, baralhar e distribuir era tudo natural nela. Queria saber tudo, era impossível estar quieta.

Mulher viajada, bastava-lhe rodar com o indicador o globo terrestre, parava-o, acendia-lhe a luz e partia sem malas para aquele pontinho do planeta. Voltava, isso sim, cheia de bagagem com pedaços do mundo que largou   para  partilhar com todos.

Era uma fervorosa amante de música contemporânea. Acreditava que um músico/banda se revela ao vivo e tirou as teimas indo a concertos, uns atrás dos outros com a filha.

“Santana, Chico Buarque, James Brown… fomos a todos, pulámos e cantámos até ficarmos roucas! Ali na multidão, éramos companheiras, fora dela também”, recorda Maria.

Nunca me ligou muito até àquela tarde na mesa redonda do café. Falou das ganadarias e dos muitos amigos que tinha no meio, conheceu o prazer de ver os toiros e touros correr no prado. Sentava-se na mesa de madeira comprida, cheia de gente, os caçadores já tinham voltado, era a hora do convívio.

Falava com entusiasmo, revivia com deleite as intermináveis tardes. Fui atrás dela e acabámos a beber um copo de vinho tinto, outro de branco, ribatejanos, pois claro. Estávamos no Colete Encarnado, três dias de festa rija!

Voltando à mesa redonda do café, lá estava o marido da Maria que não é nenhuma flor que se cheire, um sapo que nunca se transformou em príncipe.

A mãe da Maria engoliu muitas vezes o sapo, mais do que deveria, mas que remédio. Todos nós o engolíamos, gostávamos da Maria, era o preço a pagar para estarmos com ela.

Um dia, finalmente, a Maria deixou de engolir sapos. Foi doloroso, passou  um mau bocado. Perdeu o sono, a fome, não as lágrimas, essas foram intermináveis. Até ao dia em que crashou. Tinha de acontecer, era o princípio do fim da saparia.

Eu e a mãe levamo-la para o centro de saúde e aguardamos cá fora. Só aí descobriu que nunca engoli muitos sapos, e muito menos gostava do sapo. “Aquela pele viscosa e verde agoniava-me”, disse e repeti ao ver a admiração na sua cara.

Sapo para aqui, sapo para ali, rók rók para a frente, rók rók para trás e eis que começam a cair sapos do céu. Imensos! Protegemo-nos debaixo da beira do telhado e era vê-los cair e estatelarem-se no chão no seu crók final. Ploff!  A saparia rebentou, sapo a sapo, à nossa frente. Sapa nisso!

Foi aí que começou uma ténue amizade que teve muita coisa boa sim, mas percalços também. Nenhuma gosta de engolir sapos e, às vezes, confrontávamo-nos, nada que fizesse mossa, era até bom sinal. Secretamente pensava que também sou uma rainha e duas  rainhas juntas entram em choque. É isso!  Humm, nop.. É tudo culpa do meu mau feitio, isso sim!

Poucos anos depois, a mãe da Maria ficou semi-acamada, uma máquina por perto, o corpo debilitado, sugado pela doença. Mas nada a impedia de dar instruções, fazer pedidos sucessivos à filha e ao neto, os seus cuidadores.  Refilava, perguntava, queria estar a par de tudo. Que nem uma rainha, pois claro!

A mãe da Maria morreu. Disse na ultima visita dos filhos ao hospital que queria descansar. Eles saíram e ela descansou. Era como se tivesse marcado a hora da despedida,  há muito que  tinha escolhido a música.

A Maria falou sobre a mãe e aguentou as lágrimas, até não conseguir mais. Era por ela que ali estava, para ela.

O neto ligou a coluna, ele entrou e arrebatou todos. A sua música mais conhecida, com mais substrato, tão bonita, ecoou pela sala como se num concerto estivéssemos. Mesmo na sua morte, em jeito de celebração da vida,  a mãe da Maria conseguiu ter a última palavra.

Cheque-mate da Rainha!

And now, the end is near
And so I face the final curtain
My friends, I'll say it clear
I'll state my case of which I'm certain
I've lived a life that's full
I traveled each and every highway
But more, much more than this
I did it my way
Regrets, I've had a few
But then again, too few to mention
I did what I had to do
And saw it through without exemption
I planned each chartered course
Each careful step along the byway
But more, much more than this
I did it my way
Yes, there were times, I'm sure you knew
When I bit off more than I could chew
But through it all, when there was doubt
I ate it up and spit it out
I faced it all and I stood tall
And did it my way
I've loved, laughed and cried
I've had my fill, my share of losing
And now, as tears subside
I find it all so amusing
To think I did all that
And may I say, not in a shy way
Oh no, no, not me
I did it my way
For what is a man, what has he got
If not himself then he has not
To say all the things he truly feels
And not the words of one who kneels
The record shows, I took the blows
But I did it my way
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