Era Abril no Meco

Gostávamos de ir até lá, há muitos anos, quando trocávamos as férias de Verão pela Primavera e os dias acordavam quentes.

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1737

Numa véspera do 25 de Abril, creio que era quinta-feira, decidimos que a temperatura convidava. E o jipe insinuou-se pelos carreiros ainda poeirentos, passou as terras de cultivo sobranceiras à praia e com um estremeção de júbilo, aninhou-se debaixo de um carrasco.

Digo o jipe, porque tinha personalidade, pintado de amarelo açafrão, amigo de roncar quando se carregava no acelerador.

Pretensamente conduzido por si mesmo, não dava satisfações a ninguém. Nunca nos viam la dentro, só viam um jipe de cor pouco vulgar, muito ágil para os anos que já devia  ter em cima, só nós sabíamos quantos.

Naquele tempo o Meco só tinha campos de cultivo, mais longe o segredo das dunas e a praia de um mar pujante.

Íamos pela beleza de ambos, por aquele areal extenso onde a liberdade dos que queriam fazer nudismo, era igual à dos que preferiam passear vestidos.

Mal descíamos o caminho de terra e pisávamos areia, corríamos em direcção ao mar, dávamos o mergulho inaugural do ano, tomávamos sol virados para a parede que segurava as terras. Dormitávamos.

As arribas escondiam a riqueza da argila esverdeada, por onde corria água de nascentes que os campos prodigalizavam. Num dos locais, ao lado de uma pequenina caverna, corria um veio generoso que dava para encher garrafas, quando a paciência ajudava.

Era costume as pessoas irem até lá, tirar pedaços de argila ensopada, fazer máscaras para barrar o corpo nu, ou só o rosto, e voltar à toalha de praia para tomar mais uma dose de sol.

Quando rondava o meio-dia, o calor já era intenso. Outro banho no mar, outra viagem à parede, recolher e espalhar mais argila, ou encher uma caneca de água, que andava sempre no jipe, porque a diziam puríssima, medicinal.

Quando sozinha, em topless, me dirigi à parede, vi que já havia uma fila de cinco pessoas nuas. Logo à minha frente um senhor de meia-idade, bem constituído, só vestido de chapéu branco, virou-se de repente para trás e de forma educadíssima ofereceu-me a dianteira.

“Não, por favor…não vale a pena” – disse-lhe mais de mil vezes, vermelha como polpa de tomate. Era do sol, já se vê…

Mas ele era insistente. Não deu tréguas ao cavalheirismo enquanto não passou para trás de mim. Fiquei de viés o tempo todo, com a caneca a servir de pareo. E chegados à parede, ainda encheu a vasilha que me entregou com a vénia  mais elegante que eu já vira

Lá vim a bebericar direita à toalha, aprendendo os vários ângulos de expor as partes do corpo aos benefícios do sol e repetindo um aforismo francês que dizia muito em miúda: “Honi soit qui mal y pense”.

Alguém me perguntou, três vozes familiares, se me esquecera da argila. Pois é, tinha-me esquecido do principal.

Barrei o rosto, o tronco e as pernas com uma boa camada de creme e fui praia fora sozinha, olhando à esquerda e à direita sem virar a cabeça, só os olhos, pensando na minha iliteracia sobre formas de fazer nudismo.

A uns bons dez metros de distância, duas senhoras todas vestidas, de braço dado para se protegerem, sei lá, levavam um açafate pequeno com cravos que faziam sucesso. Deitados, sentados, levantando-se, os cavalheiros compravam um para oferecerem às e aos acompanhantes.

Foi nessa altura que o vi levantar-se – devia ter olhos de lince – comprar um cravo e correr na minha direcção. Pois é…oferecia-me a flor com a segunda vénia mais elegante da época.

Estão a imaginar a corrida? As senhoras iam deixando cair o açafate…só tinham mãos para tapar a boca.  O problema foi, quando voltei à toalha, explicar que me tinham oferecido um cravo porque estávamos a chegar ao 25 de Abril. Sim…não foi grande história, mas que outra poderia contar alem da verdadeira?

Era hora de regresso. O jipe ainda roncou mais todo o caminho, como se estivesse zangado. Depois estacionou desabridamente diante do prédio e quase me atirou contra o pára-brisas.

Fiquei com saudades daquele Meco. Tantas que envidei esforços para comprar lá um pedaço de terreno e fazer uma cabana para férias.

Não houve quórum…

Durante anos não pus lá os pés, nem assisti à sua transformação.

E tenho pena de que fosse transformado. Todos os lugares quase virgens são atacados pela erisipela do “progresso”. Este nem tanto, dizem, atendendo ao panorama do país…

Se lá tivesse feito a cabana, plantava um canteiro de cravos e ia para a praia oferecê-los, em Abril.

5 COMENTÁRIOS

  1. E acho que fazias muito bem, oferecendo-os. Falta, porém, um pormenor quiçá melindroso: as vendedeiras estavam vestidas…
    Um beijo!

  2. Nos anos 80, foi a praia mais badalada. Nos anos 90 começaram as transformações, festivais de música e bares explorados por famosos. A primeira reportagem televisiva no Meco foi feita por um jornalista extraordinário (meu grande amigo e mestre) chamado Mário Lindolfo. Quando avançou pelo areal de câmara e microfone em riste, sentiu que a reportagem iria falhar. Ele e o cameraman eram os únicos vestidos… despiram-se. Foi uma reportagem memorável, passou num programa semanal apresentado pelo Carlos Pinto Coelho, creio que em 1982.

  3. Muito grata a ambos.
    Zé, em topless já estava (quase) dentro do espírito do lugar. Para oferecer flores, talvez optasse pelo biquini, nunca vestida do pescoço aos tornozelos como as tais senhoras. Mas ninguém as incomodou. Tudo gente civilizada.
    Carlos, eu compreendo. Reportagem para mostrar tudo, exigia que ficassem sem nada. Corajosos. Deve ter sido uma reportagem única, didáctica. O lugar era magnífico. Deve ser ainda…
    Um beijo a cada um. Noite tranquila.

  4. Li, reli e voltei a esse tempo em que também ” visitei” o Meco. Era o tempo das descobertas, do arrojo, da liberdade.
    Tal como a Helena também me limitei ao topless mas consegui perceber a naturalidade de qyem praticava nudismo.
    O texto é como não podia deixar de ser de enorme qualidade e riqueza salpicado por um humor fino como só a Helena Ventura sabe escrever.

  5. Oh que maravilha! Bem podia rever-me, não enquanto destinatária de tais atenções, mas como protagonista de alguma menor descontracção em circunstâncias dessas. Aconteceu-me parecido. E, depois, era mais uma das manifestações da liberdade, que viesse ela.

    Deliciosa, esta crónica, de um humor refinado, saborosa como tudo! E tão magistralmente contada que também vejo o cavalheiro gentil a ceder-lhe a vez…

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