Bússola sem norte

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O Eugénio de Andrade define a ausência, a solidão, de uma forma sublime e bela que até parece ser de felicidade:

Acordo sem o contorno do teu rosto na minha almofada, sem o teu peito liso e claro como um dia de vento, e começo a erguer a madrugada apenas com as mãos que me deixaste, hesitante nos gestos, porque os meus olhos partiram nos teus.

Podia juntar-lhe uma sinfonia de palavras do Joaquim Pessoa:

Estou mais perto de ti porque te amo.
Os meus beijos nascem já na tua boca
Não poderei escrever teu nome com palavras.
Tu estás em toda a parte e enlouqueces-me.

Uma e outra vez a angústia de não te poder ter aqui, de não saber porquê, de sermos diferentes em quase tudo, a começar pelos homens em quem não confias. Estás sempre lembrar-me que não confias em mim porque sou homem.

De que adianta dizer-te que em mim podes confiar se a vida te ensinou a duvidar, a nada ter por certo, se a história e a memória te empurram contra o mundo?

Lá fora está frio e chuva e o escuro é profundo. Já não há dias de sol. Tu ensinaste-me a ver o Sol ou terá sido apenas o momento e confundi tudo com a paixão que agora arrasto no féretro de um amor não correspondido?

Diz-me qual a estrada que devo percorrer, ensina-me a caminhar, pega outra vez na minha mão, eu de cabelos grisalhos e barba mal desfeita, aquele a quem um dia cantaram os imerecidos versos para esculpir na pedra que me há-de cobrir a sepultura:

Luz, falo, Sol,
E mar, verde, longo,
Espuma corola,
Bússola sem norte
Barco à deriva
À procura de
Paz na rota
Paz no rumo

Nunca corremos juntos pelos campos nem fomos menina e menino mas ainda vamos a tempo de nos deitarmos a olhar o sol e, quem sabe, aos poucos voltares a acreditar nos homens.

Vem comigo para o meu rio de infância e juventude, para as margens seguras pelas raízes frondosas, vem, tens pé, estou aqui como estiveram todos os meus amigos nesta água que nos fez diferentes de todos os outros homens.

Vem, eu sou igual aos meus amigos, banhei-me na água mágica do rio Águeda, saímos da piscina rio acima, no Sardão, fui ao Poço do Conde e não tive medo, nadei até ao Souto do Rio e cheguei a Bolfiar.

Estou aqui há tanto tempo que já nem me lembro do teu nome.

Tinhas os lábios vermelhos do nosso amor.

O autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

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